quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

És agora verdadeira deusa porque inacessível,
o único mistério que existe é a impossibilidade
mas não haverá incenso para glorificar a dor.
O nosso amor não foi infinito
porque nada é infinito a não ser a ausência,
esta sensação que a si própria se anula,
a certeza cruel de que não voltarei a ver-te.
Não podemos reverter o tempo
mas sei que fui feliz enquanto viveste.
Senhora, já não partem as naus
porque em teu lugar ficou a saudade,
os vestígios de um corpo em que naveguei,
As últimas imagens ficaram gravadas na memória,
não sei se havia velhos do Restelo a augurar a morte
e eu simplesmente não acreditava nas despedidas.
Senhora, é triste a tua ausência,
é um desespero saber que as naus não partem
e que alguma coisa ficou interrompida.
Senhora, fiquei sem porto e sem viagem,
Ulisses sem Penélope transformado em Minotauro
e dói-me esta inutilidade convertida em destino,
dói-me como um deserto ou uma muralha de vidro.
Senhora, já não partem as naus
e eu fiquei sozinho sem a companhia dos pássaros
que partiram para outros horizontes mais azuis.
Todas as palavras repetem o indizível
e abrem caminhos nos labirintos do tempo.
Há quem as use sem qualquer cautela,
violentando-as, esvaziando-as de sentido
até que elas ficam exangues na moldura do instante,
estéreis e ainda assim terríveis na sua aniquilação.
Outros têm medo das palavras e evitam-nas,
revestem-se de silêncios que são gritos mudos
e, como as estátuas, olham para as coisas, estarrecidos,
desesperados rios cuja água secou.
As palavras podem ser fantasmas que nos assustam,
ameaças de realidades que queremos ignorar
ou prenúncios de sentimentos incómodos,
espelhos do que realmente somos.
As palavras têm o espírito da vingança
e revoltam-se contra quem faz delas a antecâmara do vazio
revelando muito mais do que as suas sombras.
Eu tenho medo das palavras
e elas fascinam-me como deusas que não o querem ser.
São inocentes as palavras na sua crueldade
e dão-nos o espaço da memória e o esquecimento,
aquilo que podemos dizer da vida.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Senhora, partiram as naus e já não existes,
foi curto o tempo da felicidade,
ficaram tantas coisas por fazer
e o tempo é um oceano que tudo submergirá.
Tenho saudades de água e medos de marinheiro
a quem proibiram aproximar-se da praia
podendo vê-la de longe, ao anoitecer
quando a própria água se confunde com a impossibilidade.
Guardo os mapas e os vestígios das viagens,
tenho gavetas cheias de inutilidades,
coloquei o aquário vazio no meu quarto
e é nele que navego quando todos dormem.
Senhora, tornaste-te impossibilidade
mas morta não estás porque eu existo.

Silêncio somos

Silêncio somos ainda que ruidosos,
vestimos a serenidade como um fato de cerimónia,
fingimos sentimentos tranquilos,
poderíamos até regressar à infância
se não tivéssemos uma urgência absurda de destruir a esperança.
Já ninguém nos conta as histórias de antigamente
e somos órfãos da felicidade que nunca tivemos.
Por vezes temos os gestos de quem resiste ao desespero
e nos olhos perpassam azuis de horizontes impossíveis.
São porém efémeros esses momentos
e regressamos à seriedade das estátuas,
conscientes de que a magia foi erradicada
e de que não vale a pena querer mudar o mundo.
Temos relógios com as horas certas
e partilhamos códigos e solidões.
Antecipamos os cadáveres e disso temos consciência.
O silêncio será sempre a nossa última identidade.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O ciclo de Ulisses (5)

Ulisses foi talvez o último sonho de Penélope,
o derradeiro nome misturado com as imagens
e entre elas havia a imagem de uma ilha,
simples miragem ou algo ainda mais importante.
Foi só mais tarde que um poeta cego lhe chamou Ítaca,
terra dos homens que se esqueciam de si
e partiam sem sair do lugar para outras paragens.
Penélope era descendente de uma antiga deusa
e guardava um amuleto, um espelho e uma lágrima
que diziam ser da última sereia.
Penélope tinha desistido do seu destino
e recuperava a sua figura de mulher.
Quando deixou de sonhar com Ulisses,
Penélope abandonou Ítaca sem olhar para trás
mas dela só eu sei a ausência.

O ciclo de Ulisses (4)

Ficaram célebres as artimanhas de Ulisses.
Homero falou de algumas delas nos seus poemas
mas também ele cumpriu a vontade dos deuses
e obrigou Ulisses a regressar a Ítaca.
Dizem que os heróis conseguem ultrapassar a morte
mas Ulisses era demasiado humano
e envelheceu naturalmente na sua ilha,
condenado a viver apenas na memória dos homens.
o Próprio Homero que inventou as histórias
ficou prisioneiro das palavras e das suas sombras,
teve a raiva de Polifemo e a paciência de Penélope
para acabar como todos os poetas
confundindo o mundo com um horizonte de água.

O ciclo de Ulisses (3)

Penélope tecia com cuidado a teia
com que prendia Ulisses em Ítaca.
Penélope fechava as janelas que davam para o mar
e apagava nos livros as histórias de Ulisses
substituindo-as por longas recitações aos deuses.
Penélope fingia não ver o desespero de Ulisses,
tecia ininterruptamente a sua teia
e procurava envelhecer rapidamente.
Não sei qual deles morreu primeiro
mas Ulisses continuou prisioneiro da teia de Penélope
e não houve mais viagens nem desafio aos deuses.

O ciclo de Ulisses (2)

Ulisses tinha contactos com os deuses
e guardava ainda a imagem do gigante Polifemo,
desesperado e cego na orla da praia
a insultar o destino e toda a humanidade.
Ulisses tinha Penélope
e o sonho de voltar às viagens,
capitão de um barco que descobre horizontes.
Ulisses espera o convite
e é urgente o seu olhar sobre o oceano,
aquático pássaro que recusa a prisão da morte.

O ciclo de Ulisses (1)

Ulisses regressou a Ítaca
depois de ter viajado durante dezassete anos,
o tempo suficiente para não ver crescer o filho.
Ninguém o reconheceu a não ser o cão
porque os cães não se deixam enganar pela passagem do tempo
e são fieis mesmo para além do suportável.
Ulisses derrotou os pretendentes
matando-os um a um com uma crueldade meticulosa
mas Penélope tinha já abandonado a história
cansada de esperar por um final feliz.
Ulisses entretanto envelheceu sozinho
e as memórias da viagem foram-se apagando
até que duvidou que alguma vez a tivesse feito.
Eu sou o filho ignorado de Ulisses,
reinvento as aventuras inexistentes do meu pai
e procuro ainda a minha mãe numa insistência inútil
porque sei que só sem Ulisses ela poderá ser feliz.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Não sei de que cor foram os dias que passaram.
Poderia dizer que foram todos cinzentos
ou que tiveram todos a mesma cor de sépia,
poderia insistir numa atmosfera de luto
e esquecer que apesar de tudo houve dias de luz,
poderia ignorar que o cinzento tem vários cambiantes
e que o negro pode transformar-se em arco-íris.
Houve dias opacos e dias estilhaços,
houve dias silêncio e dias tristeza e mágoa,
houve dias revolta cravejados de espinhos,
houve também dias inventário sempre interrompido.
Poderia tê-los registado nas agendas próprias
ou abrir um caderno especial para eles
mas não é isso que quero guardar na memória.
Os dias que passaram estão passados,
fui deles incómodo espectador e cúmplice, caminhante
e o que importa é o horizonte e a viagem.
Quando te dei o último beijo
não sabia ainda que era a despedida
e que os meus lábios não mais tocariam os teus,
não sabia ainda nada do que depois seria,
o funeral, as condolências, os silêncios,
os rituais do luto e as flores.
Quando te disse até amanhã
acreditava que haveria mesmo esse amanhã
e muitos mais depois desse.
Quando te deixei no hospital
e regressei sozinho a casa
ignorava que seria a última vez para tudo
mas não dormi sossegado até receber a notícia.
Não tive pressentimentos nem suspeitas
e o dia que poderia até ser normal,
domingo antes de um feriado municipal,
foi o dia em que te ausentaste involuntariamente.
Mesmo que tivesse havido despedidas
a dor não seria menor nem a saudade.
Fica-me esse beijo e todos os outros que te dei,
ficam todas as tuas marcas na minha vida
e continuarás enquanto tiver memória.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Fui Sandokan

Fui Sandokan e abalroei navios piratas,
enfrentei tempestades, desenterrei tesouros.
Tinha um tigre de estimação a dormir no telhado
e quando morreu envenenado pelos vizinhos
mantive-me forte e não chorei
porque um herói não chora.
Foi talvez nesse momento de verdadeira morte,
ainda que a morte de um animal de estimação,
que a infância começou a separar-se de mim
e partiu na direcção da memória.
O Sandokan voltou aos livros de aventuras,
tenho uma gravata no interior da alma
e domestico as palavras para depois as deixar morrer.
Ninguém sabe que fui Sandokan
e mesmo eu desconfio que tenha sido essa criança,
feliz no seu mundo que transcendia a realidade.

Infância (2)

Joguei ao berlinde, coleccionei cromos,
de joelhos no chão fiz corridas com caricas,
inventei aventuras e explorei florestas
que se situavam por detrás das casas
onde os vizinhos plantavam couves e batatas,
descobri o mistério dos livros e das palavras
e a minha infância ficou sempre com o sabor de uma história,
uma história sem heróis bem monstros
mas cheia de meninos a aprenderem a vida.
Cresci quase à minha revelia,
embalado pelo sonho de conquistar o mundo
mas a única coisa que conquistei foi a insegurança,
este meu ar de quem pede constantemente desculpa
por ser como sou inevitavelmente.
O pedaço de chão onde joguei ao pião
trouxe-o na memória,
é nele em que agora escrevo estas palavras,
outra vez criança espantado diante da vida.

sábado, 24 de novembro de 2007

A criança que fui

Aquela criança que brinca fui eu
mas na altura só tinha pressa de crescer
e a fotografia ficou tremida,
do meu pai só resta a sombra
e a casa do fundo, a minha velha casa,
foi rapidamente diminuindo de tamanho
até caber num pequeno recanto da memória.
Sei agora que o menino era feliz
mas tinha medo de que o tempo lhe fugisse
e vivia na ansiedade de não fazer o que devia.
Parou por momentos de brincar ao ver-me observá-lo,
não me reconheceu naquele em que se tornou
e foi então que tive a certeza de que eu fui ele.
Vejo-o ainda a fechar a porta
e a deixar-me fora do seu espaço de infância.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O pátio, o pião e o arco

O pátio era o meu mundo à mão
e nele girava o pião enlouquecido,
o pião ébrio em busca do seu eixo de equilíbrio.
Quando o pião adormecia acordava o arco
e não sei se era eu que o guiava
ou se era ele que me conduzia
pelos caminhos misteriosos da infância.
O pátio fechado entre quatro paredes
tinha a infinitude de um mundo de criança
e todos os dias era diferente sendo ainda o mesmo.
O pátio abandonei-o quando cresci,
fugi dele para um outro mundo mais cinzento,
escondi o pião numa gaveta proibida,
o arco ficou a um canto a enferrujar-se
tal como se enferrujou a minha memória desses dias.
Olho-me no espelho e lá ao fundo está o menino
com saudades do pátio, do pião e do arco,
o menino que queria ser grande
sem saber que quando o chegasse a ser
perderia essa irrepetível magia da infância.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Infância

Onde estão o pião e o arco com que brincávamos,
o que foi feito do pátio e da casa enorme,
em que momento perdemos a inocência da infância?
O tempo era o nosso maior brinquedo
mas isso foi antes de termos relógios
e de sermos controlados por eles,
isso foi antes de termos agendas e calendários
para tornar os dias previsíveis e antecipados.
Inventávamos o mundo,
éramos cowboys, índios, marcianos,
podíamos ser tudo por sermos crianças
e não tínhamos imagens para nos aprisionar os sonhos.
Sabíamos talvez menos sobre as coisas
mas as descobertas eram nossas
e as sensações que tínhamos eram mais verdadeiras
porque não condiziam com as que vêm nos manuais.
Dizem que todas as infâncias são lugares mágicos
mas a nossa, por ser nossa e única,
tem uma magia que ultrapassa as palavras
e obriga-nos a libertar outra vez a criança
que o tempo submergiu neste nosso corpo das certezas.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Morri também em 7 de Outubro
e a vida continua.
Resta a mágoa, um indescritível sofrimento,
a saudade que cresce dia a dia
mas estás presente na memória,
respiras na minha respiração,
és mais do que as fotografias coloridas
que o tempo forçosamente desbotará
aumentando os espaços de indefinição,
o cinzento obsessivo da inexorável ausência.
A tua voz fundir-se-á na minha
e se resisto é porque não quero esquecer-te
e sei que seria atraiçoar-te desistir,
encerrar-me numa prisão de dor,
torturar-me com pena de mim mesmo.
Morri contigo e continuo vivo
e em tudo o que fizer quero merecer-te.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Há palavras crúeis como punhais ensanguentados:
nunca, definitivamente, morte;
há sentimentos que nos atacam à traição,
sentimentos que nos tornam na sombra do que somos.
Dizem-nos para resistir ao desespero
e sabemos que somos mais do que cadáveres adiados
mas é difícil aceitar as palavras crúeis
e os sentimentos que nos tornam reféns dos pesadelos.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

As palavras não servem para dizer a perda,
as palavras são leves demais para traduzir a ausência,
a dor da falta, o desespero inconsolável e infinito.

Eu dantes acreditava nas palavras,
elas eram as minhas companheiras,
as cúmplices da minha existência preenchida.
Eu dantes era feliz
e era feliz com as palavras
porque elas traduziam a minha felicidade.

Voltarei talvez a acreditar nelas
quando estiver grávido da memória
e tiver urgência de te trazer aqui,
revestida de palavras,
desafiadora da morte
eterna companheira.
Os dias que tivemos estão guardados na memória,
posso retirá-los da arca, a arca impalpável mas real,
colocá-los em cima da mesa,
avaliá-los, saboreá-los até os saber de cor
mas os dias que não tivemos o que fazer com eles?
São esses os dias de que tenho saudades,
são eles que me doiem, os dias ausentes,
os impossíveis momentos nunca vividos,
os espaços definitivamente em branco da memória.
Houve alguém que nos roubou esses dias
e mesmo este nós já nem sequer existe;
sou só eu a sentir nostalgia pelo que não pudemos ter,
sou só eu a remoer no silêncio todas as impossibilidades
até que elas se transformam numa espécie de prisão que me sufoca.
Os dias que tivemos são a única coisa que resta de nós,
a nossa pele, a nossa respiração, o nosso sentido
e tenho que viver só com isso.
Que vida é a minha se não posso ter os dias que queria,
os nossos dias merecidos,
tudo o que não fizemos e o que não te disse?

domingo, 15 de julho de 2007

Poesias de amor ridículas

Porque o amor é inquietação e alvoroço,
saudade, mesmo quando a presença é uma promessa,
também eu escrevo poesias de amor ridículas.
Porque no amor as palavras são pretexto
e as regras que as comandam ainda não foram escritas,
escrevo as minhas poesias de amor que não te mostro.

O amor não é ridículo,
ridículos são aqueles que o querem aprisionado aos códigos,
circunspecto, decente e respeitável.
O amor não é ridículo,
ridículos são aqueles que consideram o amor ridículo.

Escrevo poesias de amor ridículas
e se não tas mostro
não é porque me ache ridículo
mas sei que todas as palavras são desnecessárias
menos aquelas que nascem da comunhão dos nossos corpos.

Nestes instantes

Inclina-te um pouco mais
até o teu rosto sair do limiar da sombra,
inclina-te como se me fosses beijar
embora os nossos rostos não se toquem,
inclina-te como se fosses falar
embora continuemos vestidos de silêncio.

Dá-me a tua mão,
entrelacemos os dedos
sem palavras
porque as palavras são muitas vezes estorvo.

Nestes instantes somos nós a eternidade.

Se todos os silêncios

Se todos os silêncios pudessem ser subterrâneas fontes
enviaria um correio de ausência
tão triste quanto uma manhã enevoada
ou uma criança que nunca conheceu os pais.

Não sei escrever senão na areia que tudo absorve
e que transforma os sentimentos em gélidas esfinges,
estátuas do tempo que o tempo desconhece.
Não sei escrever senão sentimentos que não tenho
ou que,se os tenho, são convertidos em palavras ocas,
vitrinas que só guardam as sombras e os vazios,
estantes para colocar as sensações já catalogadas.
Perdi as memórias antes mesmo de as ter,
perdi-as como se perdem objectos antigos,
herdados de um tempo de que temos saudade
pelo simples facto de não o termos vivido.

Se todos os silêncios pudessem ser água que escorre
deixá-los-ia escorrer sobre o meu corpo
lavando-me dos medos e dos pensamentos de pedra
até que as algas substituíssem os meus cabelos
e conchas formassem desenhos no meu peito,
desenhos que só as magias antigas reconhecem.

Teimo em escrever mesmo que as palavras me doam,
recuso que o silêncio possa ser um túmulo
e tenho ainda a ilusão de partir em viagem
até à origem dos silêncios com corpos de mulher
e olhos de criança para espreitar os futuros

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Alquimia involuntária

Transmuta-se a pedra em água,
Percorre o corpo um arrepio breve,
Por detrás da palavra poderia estar a realidade
Se ela não mentisse a memória fabricada.

Muda-se o sonho em qualquer coisa árida,
O corpo viaja entre o Egipto e a casa,
Desatento ao lento desenrolar da teia do destino.

Este silêncio é tudo quanto resta
Da pedra do meu corpo transmutada em água
E das palavras suspensas num tempo ainda por nascer.

As palavras

As palavras são castigos,
Engrenagens da máquina do tempo,
Restos das ninfas, esqueletos aquáticos.

As palavras são os sinais do indizível,
A alquimia, o padrão, o mapa das viagens,
Espelho que reflecte o que ainda não há.

As palavras são o corpo dos dias,
Com elas nos vestimos para sair para a rua,
Com elas construimos a nossa identidade
E é nelas ainda que aprendemos a desenhar os horizontes.

As palavras são cinzentos punhais incandescentes
A incendiar os silêncios e a calcinar os homens,
Estáticas estátuas de delimitar a eternidade.

As palavras são explosões de estrelas,
Universos concentrados a escorrerem das canetas,
Rios demenciais a desaguar em mansos lagos
Que escondem profundidades de perigo e de mistério.

As palavras, irmãs e filhas,são secretas sacerdotisas
Diariamente imoladas nos altares mais quotidianos,
Desconhecidas deusas crucificadas no esquecimento,
Despedaçadas virgens a frutificar de esperança
E a renascer do sangue violentado.

As palavras são brinquedos, papagaios de voo controlado,
Piões a girar na palma da mão,
Caleidoscópio de imagens, carrossel de sensações.

As palavras, enigmas da esfinge,
São pirâmides arquitectadas nos desertos das cidades,
Construções de ausência e de existência,
O chão e o abismo do nosso humano ser.

As palavras são pássaros, algas, peixes anfíbios,
O que restou dos cânticos das sereias
Que outrora tornavam o mundo mais perigoso e fascinante.

As palavras são enxadas, martelos e bigornas,
Instrumentos de festa e de trabalho,
Os protótipos das invenções nunca registadas
Porque todas as verdadeiras descobertas são as ignoradas.

As palavras, amor, são o nosso código secreto
Feito de silêncios e gestos, de presenças,
Histórias diferentes e corpos comuns,
A senha para o despertar da nossa madrugada.

As palavras são janelas entre nós e as coisas
E ao abri-las encontramos uma outra realidade,
Um espaço de sombra e luz, a claridade,
A indizível memória que nos sobrou em herança
De um tempo em que só o silêncio era a verdade.

Manhãs

Longas manhãs de gritos lentos despertam as estátuas
E pela pedra perpassa o milenário espanto
De quem sente o seu segredo violado
E espera com ansiedade os anões do sacrifício,
O estilhaçar dos espelhos e os desertos.
Nas manhãs assim os animais petrificam-se,
De longe nos chega o ladrar dos cães,
O lento silenciar do riso e das vozes,
A dor que dói no interior do corpo,
As rezas das velhas e as ladainhas roucas.
Fico em casa porque sei do perigo
Que é para os homens a sombra do destino,
Lâminas inertes a ocupar um espaço.
Desde pequeno me ensinaram que as viagens
Se devem fazer no interior do nevoeiro,
Nas noites da intensa e pura claridade
E como mapas devemos levar os horizontes
Indiferentemente divididos nos quatro pontos cardeais,
Rosa dos ventos de não saber o caminho.
Lentas manhãs de sons suspensos adormecem os pássaros
E a carne deixa de ser o limite para o corpo
Porque por mais que a morte esteja convidada
Só as crianças compreendem os segredos da memória,
Fénix que se recusa a transformar-se em cinza.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Porto

Cidade estendida como uma bandeira de sensações,
Mulher que se petrifica em estátua e silêncio,
Criança que brinca nas margens da eternidade.

Um rio te descobre a origem e o horizonte,
Um rio te desagua em foz e pôr de sol,
Um rio onde navegam os sonhos e as imagens.

Cidade em cascata, com casas e gente, com penumbras,
Escadas de farol a vigiar o instante,
Mercado de cheiros e despertar de emoções.

Vim de longe para renascer em ti, cidade – mãe
E navego no rio das palavras,
Retábulo como tu dos futuros possíveis.

Renovação

Renovam-se os dias sem as violências necessárias
Renovam-se os dias na pele das cobras de água,
Sinuosas margens a demarcar fronteiras,
Perpétuas esfinges na areia do fim da tarde.
Renovam-se os inevitáveis sinais da existência,
Os sons, as imagens, as palavras vestidas de incerteza
Que nos fazem navegar para além da origem
Ressuscitamos, nós, os herdeiros do tempo,
Ressuscitamos sem milagres, sem mitos,
Sem transubstanciação da carne,
Também nós nos renovamos como os rios,
Seguimos viagem, somos
Nos múltiplos reflexos que os espelhos nos devolvem.

Tenho sentimentos como facas

Tenho sentimentos como facas,
Acabei de ler o livro de Cesário Verde
E a cidade deixou de ser em mim um outro corpo.
É nestes momentos que as palavras são inúteis
Porque as inquietações são sempre maiores do que as suas imagens.
Tenho sentimentos como facas,
Serpentes venenosas que se alimentam dos meus medos
E destilam a vingança contra os que me querem submisso.
Por vezes os meus gestos são os do abutre em pleno voo
Mas no momento seguinte é minha a imobilidade das pedras.
Tenho sentimentos como facas,
Perigosos assassinos se hospedam no meu corpo,
Deixam as salas desarrumadas e os cofres vazios,
Os cofres onde guardei a infância de baloiço e pião.
O livro do Cesário está pousado sobre a mesa,
O que nele li foram as minhas sensações distorcidas,
A nostalgia de não ter sentimentos simples e sinceros
E a vida em forma de barco em constante naufrágio.
Tenho sentimentos como facas
A sangrar inutilmente nos cadáveres das últimas palavras escritas.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Saudades impossíveis

Entre a criança que brincou ao pião e que jogou à bola
E o funeral de ter deixado de o ser
Ficou a poeira do tempo e uma imagem de céu,
O possível azul numa cidade que se petrifica em minotauro.
Não tenho porém saudades dessa criança morta
Nem guardo o pião na arca ou espreito a fotografia antiga;
Do que eu tenho saudades, saudades infinitas,
Saudades espinho e ácido, saudades de nem poder chorar,
É daquilo tudo que não fui nem poderia ter sido,
É isso que me faz pena e de que me arrependo.
A criança que fui teve o seu tempo de o ser
Mas a outra,
A que nunca saberei como seria, a impossível,
Fica-me a doer como uma ausência no fundo do sonho.
Sou órfão dessa criança que nunca existiu
E é esse tempo de nunca e de mentira
Que procuro reencontrar no espelho da memória.

O corpo reflectido no espelho

Dedos, drásticas palavras silenciadas,
Incorruptas vertigens e virgens iluminadas,
Inocente sorriso de esfinge, a ausência,
Noite que em sobressalto se aprofunda no vazio,
Nevoeiro, lento liquefazer das pedras,
Sinuosa viagem nos limites da memória,
O sal, o musgo, o debruar dos dias,
Crianças que brincam nos pátios impossíveis,
Cidades ancoradas nas intersecções das sombras,
Arrepio, raiva de minotauro em febre e luz,
Loucura de poeta manso de remoer impérios.

O corpo todo reflectido no espelho,
Alice no transfigurar das histórias proibidas,
A escada, a janela a encaixilhar a distância,
O gesto semeado numa qualquer manhã inesperada,
As palavras ainda molhadas da urgência,
As flores, as cinzas do que foi o êxtase,
A porta de abrir passagem para o imprevisto
E sempre a sensação que ainda persiste
De que a felicidade é isto de ignorar o destino.

Minha senhora do nunca

Minha senhora do nunca
Nesta capela improvisada do meu quarto
É em ti que acredito desesperadamente,
No teu corpo vestido apenas de silêncio,
Nesse corpo que recusa os altares
E é de vez em quando o ancoradouro do meu corpo.
Seja heresia ou não eu adorar-te
És minha no interior das paredes vazias do meu quarto.

Minha senhora do nunca,
Religião de sombras e luz, de claridades,
Oráculo de públicos segredos,
Feiticeira das sensações, relógio de água,
Viagem, lenta respiração das árvores,
Sagrada heresia de quem não conhece o destino.
Minha senhora do nunca,
Sou o ateu que em ti acredita,
Construo sobre o teu corpo a capela imperfeita
E venero-te vida que me acrescenta vida.

Minha senhora do nunca,
Secreta divindade antiga
Sem oráculos de morte,
Nocturna presença adivinhada,
Penélope convertida em feiticeira,
Dá-me de beber a água da tua inquietação,
Mergulha-me no oceano das palavras retidas,
Faz-me rei e senhor de coisa nenhuma,
Deixa-me ao menos acreditar na impossibilidade,
Deusa como tu inacessível e real.

Dormia Ulisses um sono transparente

Dormia Ulisses um sono transparente,
O seu corpo pousado sobre a pedra
Como se fosse dela um prolongamento
Quando de longe se ouve o eco de Penélope,
Suave voz que a memória não recorda,
Serena água que atravessa a distância
E se detém junto do corpo adormecido.

Foi apenas um breve momento,
Quase um prenúncio de um sonho
Ou a memória que nos ficou dele.

Da voz de Penélope fica a estátua,
Perpétuo sinal da palavra silenciosa
E do corpo de Ulisses
Só o sono não interrompido
Evoca ainda o momento do encontro,
O desafio aos deuses cruéis e insensíveis
Que interditam a descoberta do desejo
E encobrem o momento do regresso
Por detrás de um desespero com nome de deserto,
Denso paraíso das consciências tranquilas,
Longínquo labirinto de paredes de vidro
Que outros minotauros preservam
Sob a forma dos generais da santidade.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Saudades

Que é feito dos marinheiros que já não podem sonhar lonjuras,
Que é feito das crianças que ficaram no cais sem despedidas,
Que é feito do meu país que se perdeu nos nevoeiros?


Tenho saudades dos enjoos de água que nunca tive,
Tenho vertigens de subir aos mastros mais altos,
Tenho nos olhos as estrelas que me guiavam nas viagens,
Tenho as palavras deixadas em herança pelas últimas sereias.


Que é feito dos adamastores convertidos em funcionários públicos,
Fieis cumpridores de horários, pais de família,
Rotineiros viajantes dos domingos obrigatórios e iguais,
Remoendo pesadelos de verdadeiras e inimitáveis vidas?
Que é feito dos imperadores dos seus desertos,
Conquistadores de efémeras famas que nunca foram registadas,
Inúteis sonhadores nas margens de um oceano impossível?


Sou eu a criança que não deixaram ir até ao cais
Para se despedir de quem não partia,
Sou eu o menos importante de todos os marinheiros,
Aquele de que nunca se sabe o nome quando do naufrágio,
Sou a ausência de adamastor, o imperador por impossibilidade,
Sou o sorriso da sereia quando chora
E não sei o que sobrou de mim na força das tempestades
Esses sonoros testemunhos do destino de não o haver.

De repente

De repente,
Como se ainda podesse haver memória do imprevisto,
Aquele homem sentado no café diante de si mesmo
Vestiu o corpo que temos quando não sabemos de nós.

Com o cigarro a ocupar o espaço entre os dedos
Sentiu a vertigem da imagem que os espelhos mentiam,
Inseguro da viagem de onde só se regressa pelo naufrágio.

Foi longo o tempo de se saber ausente,
Quase mágico foi o seu gesto de pagar a conta
E mesmo depois de ter saído permanece no café
Só não sei se sou eu ou ele
Quem escreve agora estas palavras.

Perturbam-me os cães que desenterram os cadáveres

Perturbam-me os cães que desenterram os cadáveres,
Cães e cadáveres imagens da memória,
Sensações proibidas, raivosos silêncios,
Facas, gritos, anátemas furtivos,
Frenéticas viagens sem regresso ou destino,
Borbulhar da água nos secretos desertos,
O uivo feliz do último minotauro.

Fascinam-me os sinais que não consigo decifrar,
Os mistérios inúteis, os livros condenados,
As fogueiras da inquisição a perpetuar a morte,
Os heróis prisioneiros dos mitos e dos deuses
A sobreviverem nas epopeias dos portas cegos.

Os cães que pacientemente desenterram os cadáveres
Com raiva e teimosia, com insensibilidade,
Serão os sinais de que misterioso e banal quotidiano?

Os cães que persistentemente desenterram os cadáveres
Serão um reflexo meu sem que o queira,
Um retrato de sombras e o seu negativo,
Um objecto de recordar o que de mim não pode ser?

Só o silêncio me responde,
Só o silêncio me acompanha na tarefa de desenterrar palavras
Para as deixar cadáveres sobre as páginas,
Terra revolvida numa fúria de em mim decifrar os sinais.

domingo, 8 de julho de 2007

As palavras

As palavras são perigosas janelas
que mostram aquilo que não queremos ver
e não vale a pena tapá-las com cortinas
porque o tempo desgasta-as inexoravelmente,
transforma-as em espelhos de nós mesmos
e nesses espelhos reflecte-se a realidade que não somos.

As palavras são tentadoras portas
que nos dão acesso aos labirintos permitidos,
as antecâmaras da memória subitamente confundida
como um enorme puzzle de imagens e de ausências.

As palavras são as mensageiras do silêncio,
fugidias esfinges que trazem o deserto agarrado ao corpo
e miragens de outros lugares habitados pela felicidade.

Eu sou ainda o menino que se perdeu na vida
e continuo com a ilusão de coleccionar as palavras
tal como as crianças verdadeiras
colhem as conchas nas infinitas praias da esperança.

Como?

Como posso suportar tanto silêncio, tanta cinza acumulada,
Poços vazios, labirintos geométricos e inúteis,
Sereias de pedra nas antecâmaras do momento,
Viagens condenadas ao naufrágio sem cadáveres,

Como posso fingir em mim os sentimentos,
Facas e beijos, corpos como lanternas na noite

Se em lugar da água tenho os relógios,
Os barcos impossíveis e os mapas indecifráveis
Que me poderiam levar à ilha prometida
Se eu os soubesse ler
E não tivesse em mim tanta Índia adiada?

Serenidade

Serenidade.
Na superfície das coisas,
No espelho transparente da luz,
Para além de um imperceptível arrepio,
A quietude, a imperturbabilidade,
A eternidade da matéria,
O rosto petrificado do tempo.
Os olhos fixos das esfinges
Que imagens vêm para além da realidade?
A água,
Líquido fogo que passa no interior da pedra
E das outras vegetais paisagens da memória,
Que sons recupera do original silêncio?
Serenidade.
E no entanto há tempestades invisíveis,
A revolta secreta dos submissos objectos,
Desejos que explodem nos recônditos da sombra.
Serenidade.
E no entanto a água que naufragou as esfinges
Resiste nos labirintos da terra devastada.

Enche o império o papo

De guerra em guerra enche o império o papo
Até a pança inchar desmesuradamente
Dizem as avós aos netos
Numa persistente ladainha.
E eles não rebentam?
Perguntam as crianças na sua ingenuidade.
O império é velho e impenitente,
O império é monstro de mil formas
E fantasma de assustar as horas mortas,
O império é vertigem e náusea e sangue,
O império é naufrágio e cinza e esfinge.
Há nos olhos das crianças o espanto,
As palavras das avós são água na clepsidra
Mas parece que o tempo está parado,
Prisioneiro das sombras e dos labirintos,
Transmutado em minotauro na figura da morte.
De guerra em guerra,
De bomba em bomba,
De grito em grito,
De cadáver em cadáver
Enche o império o papo.
Até quando?
Inquieta-se a criança com a sabedoria do cansaço.
Imaterial memória

Imaterial memória
Esta que tenho do que não aconteceu,
Imagens coloridas de paisagens impossíveis,
Fotografias nítidas de sensações que não tive,
Memória de água
Com o sal das palavras na margem dos dias,
Memória de vento,
Tempestade e brisa que mal aflora a página,
Memória visual e transparente
De mim nos interstícios do tempo,
Viagem incompleta sem sinais da origem.
Este é um modesto blog destinado a divulgar as minhas poesias