quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Não sei de que cor foram os dias que passaram.
Poderia dizer que foram todos cinzentos
ou que tiveram todos a mesma cor de sépia,
poderia insistir numa atmosfera de luto
e esquecer que apesar de tudo houve dias de luz,
poderia ignorar que o cinzento tem vários cambiantes
e que o negro pode transformar-se em arco-íris.
Houve dias opacos e dias estilhaços,
houve dias silêncio e dias tristeza e mágoa,
houve dias revolta cravejados de espinhos,
houve também dias inventário sempre interrompido.
Poderia tê-los registado nas agendas próprias
ou abrir um caderno especial para eles
mas não é isso que quero guardar na memória.
Os dias que passaram estão passados,
fui deles incómodo espectador e cúmplice, caminhante
e o que importa é o horizonte e a viagem.
Quando te dei o último beijo
não sabia ainda que era a despedida
e que os meus lábios não mais tocariam os teus,
não sabia ainda nada do que depois seria,
o funeral, as condolências, os silêncios,
os rituais do luto e as flores.
Quando te disse até amanhã
acreditava que haveria mesmo esse amanhã
e muitos mais depois desse.
Quando te deixei no hospital
e regressei sozinho a casa
ignorava que seria a última vez para tudo
mas não dormi sossegado até receber a notícia.
Não tive pressentimentos nem suspeitas
e o dia que poderia até ser normal,
domingo antes de um feriado municipal,
foi o dia em que te ausentaste involuntariamente.
Mesmo que tivesse havido despedidas
a dor não seria menor nem a saudade.
Fica-me esse beijo e todos os outros que te dei,
ficam todas as tuas marcas na minha vida
e continuarás enquanto tiver memória.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Fui Sandokan

Fui Sandokan e abalroei navios piratas,
enfrentei tempestades, desenterrei tesouros.
Tinha um tigre de estimação a dormir no telhado
e quando morreu envenenado pelos vizinhos
mantive-me forte e não chorei
porque um herói não chora.
Foi talvez nesse momento de verdadeira morte,
ainda que a morte de um animal de estimação,
que a infância começou a separar-se de mim
e partiu na direcção da memória.
O Sandokan voltou aos livros de aventuras,
tenho uma gravata no interior da alma
e domestico as palavras para depois as deixar morrer.
Ninguém sabe que fui Sandokan
e mesmo eu desconfio que tenha sido essa criança,
feliz no seu mundo que transcendia a realidade.

Infância (2)

Joguei ao berlinde, coleccionei cromos,
de joelhos no chão fiz corridas com caricas,
inventei aventuras e explorei florestas
que se situavam por detrás das casas
onde os vizinhos plantavam couves e batatas,
descobri o mistério dos livros e das palavras
e a minha infância ficou sempre com o sabor de uma história,
uma história sem heróis bem monstros
mas cheia de meninos a aprenderem a vida.
Cresci quase à minha revelia,
embalado pelo sonho de conquistar o mundo
mas a única coisa que conquistei foi a insegurança,
este meu ar de quem pede constantemente desculpa
por ser como sou inevitavelmente.
O pedaço de chão onde joguei ao pião
trouxe-o na memória,
é nele em que agora escrevo estas palavras,
outra vez criança espantado diante da vida.

sábado, 24 de novembro de 2007

A criança que fui

Aquela criança que brinca fui eu
mas na altura só tinha pressa de crescer
e a fotografia ficou tremida,
do meu pai só resta a sombra
e a casa do fundo, a minha velha casa,
foi rapidamente diminuindo de tamanho
até caber num pequeno recanto da memória.
Sei agora que o menino era feliz
mas tinha medo de que o tempo lhe fugisse
e vivia na ansiedade de não fazer o que devia.
Parou por momentos de brincar ao ver-me observá-lo,
não me reconheceu naquele em que se tornou
e foi então que tive a certeza de que eu fui ele.
Vejo-o ainda a fechar a porta
e a deixar-me fora do seu espaço de infância.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O pátio, o pião e o arco

O pátio era o meu mundo à mão
e nele girava o pião enlouquecido,
o pião ébrio em busca do seu eixo de equilíbrio.
Quando o pião adormecia acordava o arco
e não sei se era eu que o guiava
ou se era ele que me conduzia
pelos caminhos misteriosos da infância.
O pátio fechado entre quatro paredes
tinha a infinitude de um mundo de criança
e todos os dias era diferente sendo ainda o mesmo.
O pátio abandonei-o quando cresci,
fugi dele para um outro mundo mais cinzento,
escondi o pião numa gaveta proibida,
o arco ficou a um canto a enferrujar-se
tal como se enferrujou a minha memória desses dias.
Olho-me no espelho e lá ao fundo está o menino
com saudades do pátio, do pião e do arco,
o menino que queria ser grande
sem saber que quando o chegasse a ser
perderia essa irrepetível magia da infância.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Infância

Onde estão o pião e o arco com que brincávamos,
o que foi feito do pátio e da casa enorme,
em que momento perdemos a inocência da infância?
O tempo era o nosso maior brinquedo
mas isso foi antes de termos relógios
e de sermos controlados por eles,
isso foi antes de termos agendas e calendários
para tornar os dias previsíveis e antecipados.
Inventávamos o mundo,
éramos cowboys, índios, marcianos,
podíamos ser tudo por sermos crianças
e não tínhamos imagens para nos aprisionar os sonhos.
Sabíamos talvez menos sobre as coisas
mas as descobertas eram nossas
e as sensações que tínhamos eram mais verdadeiras
porque não condiziam com as que vêm nos manuais.
Dizem que todas as infâncias são lugares mágicos
mas a nossa, por ser nossa e única,
tem uma magia que ultrapassa as palavras
e obriga-nos a libertar outra vez a criança
que o tempo submergiu neste nosso corpo das certezas.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Morri também em 7 de Outubro
e a vida continua.
Resta a mágoa, um indescritível sofrimento,
a saudade que cresce dia a dia
mas estás presente na memória,
respiras na minha respiração,
és mais do que as fotografias coloridas
que o tempo forçosamente desbotará
aumentando os espaços de indefinição,
o cinzento obsessivo da inexorável ausência.
A tua voz fundir-se-á na minha
e se resisto é porque não quero esquecer-te
e sei que seria atraiçoar-te desistir,
encerrar-me numa prisão de dor,
torturar-me com pena de mim mesmo.
Morri contigo e continuo vivo
e em tudo o que fizer quero merecer-te.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Há palavras crúeis como punhais ensanguentados:
nunca, definitivamente, morte;
há sentimentos que nos atacam à traição,
sentimentos que nos tornam na sombra do que somos.
Dizem-nos para resistir ao desespero
e sabemos que somos mais do que cadáveres adiados
mas é difícil aceitar as palavras crúeis
e os sentimentos que nos tornam reféns dos pesadelos.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

As palavras não servem para dizer a perda,
as palavras são leves demais para traduzir a ausência,
a dor da falta, o desespero inconsolável e infinito.

Eu dantes acreditava nas palavras,
elas eram as minhas companheiras,
as cúmplices da minha existência preenchida.
Eu dantes era feliz
e era feliz com as palavras
porque elas traduziam a minha felicidade.

Voltarei talvez a acreditar nelas
quando estiver grávido da memória
e tiver urgência de te trazer aqui,
revestida de palavras,
desafiadora da morte
eterna companheira.
Os dias que tivemos estão guardados na memória,
posso retirá-los da arca, a arca impalpável mas real,
colocá-los em cima da mesa,
avaliá-los, saboreá-los até os saber de cor
mas os dias que não tivemos o que fazer com eles?
São esses os dias de que tenho saudades,
são eles que me doiem, os dias ausentes,
os impossíveis momentos nunca vividos,
os espaços definitivamente em branco da memória.
Houve alguém que nos roubou esses dias
e mesmo este nós já nem sequer existe;
sou só eu a sentir nostalgia pelo que não pudemos ter,
sou só eu a remoer no silêncio todas as impossibilidades
até que elas se transformam numa espécie de prisão que me sufoca.
Os dias que tivemos são a única coisa que resta de nós,
a nossa pele, a nossa respiração, o nosso sentido
e tenho que viver só com isso.
Que vida é a minha se não posso ter os dias que queria,
os nossos dias merecidos,
tudo o que não fizemos e o que não te disse?