quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

És agora verdadeira deusa porque inacessível,
o único mistério que existe é a impossibilidade
mas não haverá incenso para glorificar a dor.
O nosso amor não foi infinito
porque nada é infinito a não ser a ausência,
esta sensação que a si própria se anula,
a certeza cruel de que não voltarei a ver-te.
Não podemos reverter o tempo
mas sei que fui feliz enquanto viveste.
Senhora, já não partem as naus
porque em teu lugar ficou a saudade,
os vestígios de um corpo em que naveguei,
As últimas imagens ficaram gravadas na memória,
não sei se havia velhos do Restelo a augurar a morte
e eu simplesmente não acreditava nas despedidas.
Senhora, é triste a tua ausência,
é um desespero saber que as naus não partem
e que alguma coisa ficou interrompida.
Senhora, fiquei sem porto e sem viagem,
Ulisses sem Penélope transformado em Minotauro
e dói-me esta inutilidade convertida em destino,
dói-me como um deserto ou uma muralha de vidro.
Senhora, já não partem as naus
e eu fiquei sozinho sem a companhia dos pássaros
que partiram para outros horizontes mais azuis.
Todas as palavras repetem o indizível
e abrem caminhos nos labirintos do tempo.
Há quem as use sem qualquer cautela,
violentando-as, esvaziando-as de sentido
até que elas ficam exangues na moldura do instante,
estéreis e ainda assim terríveis na sua aniquilação.
Outros têm medo das palavras e evitam-nas,
revestem-se de silêncios que são gritos mudos
e, como as estátuas, olham para as coisas, estarrecidos,
desesperados rios cuja água secou.
As palavras podem ser fantasmas que nos assustam,
ameaças de realidades que queremos ignorar
ou prenúncios de sentimentos incómodos,
espelhos do que realmente somos.
As palavras têm o espírito da vingança
e revoltam-se contra quem faz delas a antecâmara do vazio
revelando muito mais do que as suas sombras.
Eu tenho medo das palavras
e elas fascinam-me como deusas que não o querem ser.
São inocentes as palavras na sua crueldade
e dão-nos o espaço da memória e o esquecimento,
aquilo que podemos dizer da vida.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Senhora, partiram as naus e já não existes,
foi curto o tempo da felicidade,
ficaram tantas coisas por fazer
e o tempo é um oceano que tudo submergirá.
Tenho saudades de água e medos de marinheiro
a quem proibiram aproximar-se da praia
podendo vê-la de longe, ao anoitecer
quando a própria água se confunde com a impossibilidade.
Guardo os mapas e os vestígios das viagens,
tenho gavetas cheias de inutilidades,
coloquei o aquário vazio no meu quarto
e é nele que navego quando todos dormem.
Senhora, tornaste-te impossibilidade
mas morta não estás porque eu existo.

Silêncio somos

Silêncio somos ainda que ruidosos,
vestimos a serenidade como um fato de cerimónia,
fingimos sentimentos tranquilos,
poderíamos até regressar à infância
se não tivéssemos uma urgência absurda de destruir a esperança.
Já ninguém nos conta as histórias de antigamente
e somos órfãos da felicidade que nunca tivemos.
Por vezes temos os gestos de quem resiste ao desespero
e nos olhos perpassam azuis de horizontes impossíveis.
São porém efémeros esses momentos
e regressamos à seriedade das estátuas,
conscientes de que a magia foi erradicada
e de que não vale a pena querer mudar o mundo.
Temos relógios com as horas certas
e partilhamos códigos e solidões.
Antecipamos os cadáveres e disso temos consciência.
O silêncio será sempre a nossa última identidade.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O ciclo de Ulisses (5)

Ulisses foi talvez o último sonho de Penélope,
o derradeiro nome misturado com as imagens
e entre elas havia a imagem de uma ilha,
simples miragem ou algo ainda mais importante.
Foi só mais tarde que um poeta cego lhe chamou Ítaca,
terra dos homens que se esqueciam de si
e partiam sem sair do lugar para outras paragens.
Penélope era descendente de uma antiga deusa
e guardava um amuleto, um espelho e uma lágrima
que diziam ser da última sereia.
Penélope tinha desistido do seu destino
e recuperava a sua figura de mulher.
Quando deixou de sonhar com Ulisses,
Penélope abandonou Ítaca sem olhar para trás
mas dela só eu sei a ausência.

O ciclo de Ulisses (4)

Ficaram célebres as artimanhas de Ulisses.
Homero falou de algumas delas nos seus poemas
mas também ele cumpriu a vontade dos deuses
e obrigou Ulisses a regressar a Ítaca.
Dizem que os heróis conseguem ultrapassar a morte
mas Ulisses era demasiado humano
e envelheceu naturalmente na sua ilha,
condenado a viver apenas na memória dos homens.
o Próprio Homero que inventou as histórias
ficou prisioneiro das palavras e das suas sombras,
teve a raiva de Polifemo e a paciência de Penélope
para acabar como todos os poetas
confundindo o mundo com um horizonte de água.

O ciclo de Ulisses (3)

Penélope tecia com cuidado a teia
com que prendia Ulisses em Ítaca.
Penélope fechava as janelas que davam para o mar
e apagava nos livros as histórias de Ulisses
substituindo-as por longas recitações aos deuses.
Penélope fingia não ver o desespero de Ulisses,
tecia ininterruptamente a sua teia
e procurava envelhecer rapidamente.
Não sei qual deles morreu primeiro
mas Ulisses continuou prisioneiro da teia de Penélope
e não houve mais viagens nem desafio aos deuses.

O ciclo de Ulisses (2)

Ulisses tinha contactos com os deuses
e guardava ainda a imagem do gigante Polifemo,
desesperado e cego na orla da praia
a insultar o destino e toda a humanidade.
Ulisses tinha Penélope
e o sonho de voltar às viagens,
capitão de um barco que descobre horizontes.
Ulisses espera o convite
e é urgente o seu olhar sobre o oceano,
aquático pássaro que recusa a prisão da morte.

O ciclo de Ulisses (1)

Ulisses regressou a Ítaca
depois de ter viajado durante dezassete anos,
o tempo suficiente para não ver crescer o filho.
Ninguém o reconheceu a não ser o cão
porque os cães não se deixam enganar pela passagem do tempo
e são fieis mesmo para além do suportável.
Ulisses derrotou os pretendentes
matando-os um a um com uma crueldade meticulosa
mas Penélope tinha já abandonado a história
cansada de esperar por um final feliz.
Ulisses entretanto envelheceu sozinho
e as memórias da viagem foram-se apagando
até que duvidou que alguma vez a tivesse feito.
Eu sou o filho ignorado de Ulisses,
reinvento as aventuras inexistentes do meu pai
e procuro ainda a minha mãe numa insistência inútil
porque sei que só sem Ulisses ela poderá ser feliz.