quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Podem ser suaves os dias e ainda assim violentos
de uma violência surda que nos deixa magoados,
em ferida.
Tudo parece ser normal à nossa volta,
há sorrisos, as habituais conversas inofensivas,
há tudo o que é preciso para descrever a felicidade
mas no nosso interior o abismo cresce,
é um pântano onde se afogam os sonhos,
é uma prisão que nos impede a esperança.
No silêncio da nossa inutilidade há um rio de lágrimas,
as imagens da saudade são demasiado impositivas,
são cataratas que nos paralizam por dentro
e nos convidam à dissolução definitiva.
Apetece-nos partir todos os espelhos,
gritar, gritar até que tenhamos de gritos o corpo revestido.
São como pedras estes dias que passam lentamente,
têm a densidade das tragédias antigas
e a impenetrabilidade dos muros que circundam o vazio
mas é a memória que nos mantém vivos
e somos rios suspensos à espera de reencontrar a origem.
Senhora do nunca mais e da impossibilidade
vela por mim, protege-me do desespero,
não deixes que transforme a vida num luto permanente.
Mesmo que não acredite na tua persistência
interfere por mim junto das divindades,
promete-me que voltaremos a encontrar-nos.
Preciso do teu colo e da memória do teu sorriso,
sinto-me o menino assustado com o escuro,
parado diante da porta dodesconhecido
e basta-me a tua mão imaginada para perder o medo.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Senhora, sou um marinheiro sem oceano,
abandonei o barco e fui castigado pelos deuses,
já não sei ler o rumo nas estrelas,
tenho saudades do tempo em que sonhava a viagem
mas não há nada que justifique a partida.
Senhora, os impérios estão todos esquecidos
e as terras encheram-se de gente e de relógios,
casas, ruas, instrumentos para entreter a vida,
já não há horizontes de medo e de esperança
e os homens são apenas o reflexo de si mesmos.
Senhora, os antigos portos estão abandonados,
morreram os heróis e os velhos do Restelo
e a vida continua pequenina e cómoda.
Desisti de procurar a felicidade
e são densas e pesadas as horas dos meus dias
sem a transparência das águas e os seus reflexos.
Senhora, nem tu me restas no desfilar de mágoas,
a tua única presença é a saudade
e sinto o sal que ficou prisioneiro da memória.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Como é que hei-de inventar uma vida sem ti,
sem a tua presença que se vai esbatendo na memória?
Sei que fazes parte do passado,
sei que nada pode ser recuperado
a não ser as imagens e as sensações recordadas
mas o vazio em mim impede-me de acreditar na morte.
Agita-se no meu interior a criança aterrorizada que nega a realidade
e secretamente espera que regresses a casa
sentindo que essa esperança absurda é tudo o que lhe resta
e que evita que caia no mais absoluto desespero.
Querem que eu regresse à normalidade,
exigem-no em nome da razão e da amizade
mas que normalidade pode haver nos cataclismos,
depois dos desastres que nos deixam sozinhos diante de nós mesmos?
Sei que a vida continua
e que apesar de tudo eu também continuarei
prisioneiro voluntário da tua memória
que é por agora a única razão de existir.
É insuportável a tua ausência, esta náusea de vida,
este naufrágio das sensações, este vazio,
a pedra que me ficou em lugar dos dias
porque esses perdi-os quando tu partiste.
Só sei que fui feliz em retrospectiva
mas foi demasiado curta essa felicidade,
foram demasiado breves os dias em comum,
o tempo em que a tua presença me preenchia a vida.
Desabou o meu mundo tranquilo,
perdi a bussola e o meu porto de abrigo,
fiquei sozinho num labirinto de mágoas.
A memória é como um remorso que arde e cura a ferida
mas nas imagens serás sempre jovem e inacessível,
terás a rodear-te um nevoeiro de saudades.
Não consigo acreditar que voltarei a ver-te,
seria talvez mais simples se tivesse uma crença qualquer
mas continuo racional e céptico,
insisto em ser fiel à minha consciência
mesmo que a fidelidade me impeça a esperança de encontrar-te
num mundo e num tempo em que não acredito.
A memória de ti é um espinho cravado na carne
que não quero arrancar
porque a dor que provoca me é indispensável
e sem ela perderia tudo.
A minha vida é um ritual de luto
e o meu único medo é esquecer-te.