sábado, 1 de maio de 2010

As coisas que se escrevem
nunca são verdadeiramente aquilo que era para ser escrito
porque há um abismo entre as palavras e as intenções,
um nevoeiro que transfigura as perspectivas,
um biombo entre nós e os nossos reflexos.
As coisas que se escrevem são apenas resíduos,
restos que sobraram das vidas por viver,
fragmentos dos gestos e sentimentos,
esfinges que marcam a fronteira entre o corpo e o deserto.
Eu escrevo aquilo que sei e que não sei,
aquilo que sinto e o que finjo que sinto
ou até mesmo o que deveria sentir.
Eu escrevo porque sim e porque não,
porque existo e porque me canso de existir,
com todas as razões que depois invento
e com a ausência de razões, a inevitabilidade.
Escrevo, escrevo-me, desabito-me
e as palavras são refúgio e máscara,
rios que de súbito secam no papel
e substituem as sereias e os seus fantasmas.
As coisas que escrevo são inúteis na sua verdade
e porque mentem de mim a imagem que não sou
são espelhos onde me perdendo me encontro.
As coisas que escrevo continuam minhas
e no entanto emigram para outras paisagens
na repetição de uma viagem que nunca fiz.
As coisas que escrevo estão escritas,
esqueço-as no fundo das gavetas da memória
ou são longínquas presenças que ainda não imagino
mas que sem existir são já parte da minha existência.
Escrevo como missionário sem missão,
centrado em mim e no entanto livre,
tanto quanto um homem pode ser,
livre de me reinventar com as palavras
num esforço permanente de alcançar a felicidade.