quinta-feira, 18 de março de 2010

Neste país onde a terra acaba e o mar começa
não sou monge senão de mim
sem eremitério, virgem predestinada ou livro de orações.
Tenho enjoos de água, pesa-me já o corpo
depois de ver todas as naus que partiram
e ainda não sei se existem novos horizontes
para além da distância que as crianças imaginam
enquanto brincam com as estrelas na praia.
Também eu já fui criança na minha praia imaginada,
também eu escrevi nas margens da areia
e doeram-me as palavras que se desvaneceram
como se elas fossem pessoas reais e conhecidas.
Passou o tempo das naus e das crianças na praia
e hoje só restam os vestígios das gaivotas,
essas metamorfoses das naus e das crianças,
as gaivotas que vêm pousar no meu telhado
e falam comigo numa linguagem que não entendo
porque entretanto cresci e perdi a magia da infância.
Sou órfão deste país da minha memória
mas começa a chover e fecho a janela
sem saber se lá longe o mar ainda persiste.
Somos todos narcisos ainda que envergonhados,
endeusamo-nos mesmo que numa cruz de remorsos,
procuramo-nos nos espelhos embaciados
e as palavras que usamos estão manchadas de intimidade.
Quem não gosta de si está como a bela adormecida
à espera de alguém que lhe desperte a auto-estima,
quem não gosta de si está nu num castelo fechado
e sabe e sente que as paredes não lhe evitam o sofrimento
de ser e de se querer apenas a medo,
quem não gosta de si está já morto em si mesmo,
enterrado num cemitério feito de mágoas e penas.
Somos todos narcisos enfeitiçados pelos nossos reflexos
e prontos a partir em busca de novos horizontes,
espaços para além das nossas fronteiras claustrofóbicas.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Os anos passam,
possivelmente tenho rugas nos sentimentos
e os próprios pensamentos estão mais lentos
tal como a memória que se vai inexactidando.
Os calendários vão mudando na parede
e as imagens neles são sempre nostálgicas
porque recordam os dias que não podemos recuperar.
O poeta da pátria com direito a panteão nacional
dizia que se mudam os tempos e se mudam também as vontades.
Outros, porém, preferem falar apenas do futuro
prometendo paraísos ou a felicidade serena
dos que perderam o direito à rebeldia.
Os anos passam insensíveis,
indiferentes aos diferentes rumos das minhas disposições
e quando me olho ao espelho, de relance,
ainda não sei se sou quem me observo
ou se é a própria vida que se espanta
com o que fiz em nome dela.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Entre os dias e os seus despojos resto eu,
frágil, inseguro, interrompido na viagem.
Esqueço e recordo ininterruptamente
num alucinado carrossel de sentimentos
mas as imagens vão-se desvanecendo na memória
até se transformarem em fantasmagóricas impressões de sombras.
Destino-me por vontade e omissão.

Entre o que escrevo e os silêncios magoados resto eu,
incompleto, dividido, separado de mim.
Uso as palavras para recordar que vivo
mas elas devolvem-me uma realidade deformada.
Destino-me ainda e sempre por teimosia.

Entre a razão e a inconsciência resto eu,
insubmisso, rebelde, desafiador dos deuses.
Faço dos silêncios a minha residência dos segredos
e mesmo assim não estou enclausurado em mim.
Destino-me porque não o fazer seria desistir,
acreditar que a felicidade pode ser dócil
como a promessa de uma obediência abençoada.

domingo, 14 de março de 2010

50 anos

Não é ainda o momento de fazer o balanço.
Os balanços fazem-se quando termina um ciclo
e mesmo nessas altura o que interessa é o que há-de vir.
A vida não se quer em fascículos
embora seja mais cómodo avaliar o que fizemos,
preencher as colunas do deve e haver,
petrificarmo-nos num tempo que inevitavelmente já passou.
Não quero fazer balanços ainda que provisórios,
não quero regressar aos meus diários de mágoas
até porque se o fizesse não me reconheceria neles.
Viver já é difícil tarefa
para que percamos tempo a registá-la pormenorizadamente
com o vício do bibliotecário e o desespero dos que ainda não viveram.

sábado, 13 de março de 2010

Escolhemos com cuidado as palavras para mentir os sentimentos,
vestimo-las com as cores dos nossos silêncios,
acordamos nelas como se fossem a nossa casa habitual,
aprendemos a usá-las como velhos marinheiros
que ainda sonham com um horizonte por detrás da distância.

Não são apenas máscaras, as palavras,
roupas adequadas às diversas situações,
não são rostos de sombra nem deusas que o tempo envelheceu,
não são códigos secretos, as palavras,
alquimias malignas de apequenar os homens.

Pesamos as palavras como se fossem pérolas ou pedras,
disfarçamo-las com os biombos das vidas por viver,
adormecemos com espaços vazios que elas alimentam.

E mesmo assim são por vezes incómodas, as palavras,
chegamos a desejar a sua ausência
mas quando elas faltam somos apenas as inúteis esfinges
à espera que reinventem a imortalidade.

quarta-feira, 10 de março de 2010

A memória é o meu mapa de viagens
mas tenho o limite do teu corpo ausente
e não consigo capturar os momentos em imagens nítidas.
É impossível viver no passado
porque o passado é como a areia inconsistente
que escorre entre os nossos dedos ansiosos.
É impossível reviver o que não foi possível
e o que me dói não foi o que fiz
mas aquilo que não pude ou que não quis fazer.
A memória não é estratégia de sofrimento
nem uma qualquer porta para a redenção,
a minha memória é apenas a sensação de ausência
e a teimosia em manter-te enquanto eu próprio persistir.
A inutilidade cola-se-me à pele como uma segunda pele,
uma película invisível que me paralisa os movimentos.
A inutilidade sou eu quando não acredito em mim,
quando o cansaço é superior à esperança,
quando me limito a suportar o peso do mundo.
A inutilidade é naufrágio da vontade,
preguiça de ser e de querer,
cinzas de um incêndio que consumiu o sonho.
Inúteis seremos forçosamente quando mortos
mas para isso não há remédio
e por isso custa mais ser inútil em vida.

domingo, 7 de março de 2010

Tenho um caderno de bolso onde me vou escrevendo.
Aliás, sempre me habituei a escrever aos pedaços,
fragmentaria mente,
como fragmentária é a minha vida e a de toda a gente.
Não sei se invento as palavras ou se elas me utilizam
(este é o velho enigma dos poetas)
mas é meu tudo quanto escrevo.
Quando os cadernos estão cheios vou-os substituindo
e guardo os antigos nas gavetas
mas quando a vida se esgotar
que poderei fazer senão assumir a posição dos cadáveres
embora contrariado, embora sob protesto?
Num dia cinzento desaguo no silêncio.
Tenho a alma pesada e o corpo congelado.
As horas estão suspensos no relógio
e sinto que os ponteiros abrem caminho nos meus nervos,
sinto que cada minuto é um a mais na inutilidade.
Não estou porém mais triste do que ontem
ou daquilo que estarei amanhã mesmo com chuva.
Estou em casa mas não estou à janela nem enrolado em mim,
estou como estaria se disso não tivesse consciência,
sem querer perceber os mistérios da vida
ou decifrar os incontornáveis ângulos do destino
até porque não acredito que haja isso a que chamam de destino.
Sei que lá fora é um dia cinzento
porque o meu escritório tem mais sombras
e porque o silêncio das palavras é mais profundo.
Mudei de posição e de disposição.
Pararei de escrever porque as palavras gritam,
pararei de pensar porque os sentimentos cansam
e eu quero ser sem ser
enquanto o dia for cinzento e real,

quarta-feira, 3 de março de 2010

Se é para dar conselhos não contem comigo,
não tenho certezas suficientes para fazer delas uma bandeira
e reunir à sua volta um grupo de discípulos.
Vivi o que me foi possível,
escolhi os meus caminhos, caí e levantei-me
mas nada disso pode servir de regra ou dogma
e muito menos para aqueles que não são como eu
ou que simplesmente não são eu.
Procurarei ser feliz
mas a felicidade que quero, embora partilhável,
não está num catecismo nem é um código restrito
que impõe fronteiras, proibições e condena as diferenças.
Se é para dar conselhos não contem comigo,
já há demasiados pastores com os seus rebanhos
e se tiver que ser prefiro ser a ovelha negra,
aquele que é filho de deus e do diabo,
Sísifo feliz por não trair a sua condição humana.
Dizem que a vida é sonho porque nos querem dóceis,
incapazes de construir a nossa realidade,
dizem que a morte é inevitável
para que nos habituemos a morrer em vida,
têm leis para tudo e normas e preceitos,
falam em nome da verdade mesmo quando ela é obscura,
recordam-nos continuamente que somos apenas homens
e frágeis e falíveis,
estranhos animais que anseiam pelo rebanho
e usam coleiras no lugar das gravatas.
Acreditar neles é fácil e tem compensações,
acreditar desobriga-nos de pensar e de ter dúvidas.
O pioro é quando não podemos deixar de duvidar
e transformamos as perguntas em armas de inquietação,
o pior é quando em lugar da morte escolhemos a vida
ainda que em construção, ainda que imperfeita
e somos de novo Ulisses a desafiar os deuses.

terça-feira, 2 de março de 2010

Na Inquisição dos dias torturados sou um penitente,
judeu sem fé, homem sem deuses.
Feridas de sangue abrem-se-me na carne
e ouço os risos escarninhos dos espectadores,
daqueles que se limitam a assistir à vida dos outros.
Ainda não aprendi o dom da insensibilidade
e o fogo arde como um sofrimento inapagável,
o fogo é uma coroa de espinhos que me violenta a consciência.
Afundaram a minha nau das descobertas,
queimaram os meus livros e as minhas memórias,
amortalharam-me numa visão do inferno
e usaram-me para publicitar as suas ideias de ódio.
Podem até ser verdadeiras as suas verdades
mas ninguém deveria ter que morrer por elas.
Ouviram-me gritar mas permaneceram imóveis,
fechados nas prisões das suas casas cómodas.
Na Inquisição dos dias insepultos sou um penitente
e sigo os meus passos nesta infinita procissão do desespero.