segunda-feira, 21 de junho de 2010

Nem todos os silêncios têm a mesma intensidade.
Sei-o porque eu e eles somos velhos companheiros,
tão velhos quanto a minha idade mo permite
ou a indulgência de quem viu nascer o mundo.
Os silêncios são os vários rostos de uma mesma realidade.
Nos espelhos de mim
cheguei a confundir os seus reflexos com a minha imagem,
nos espelhos de mim vesti o meu corpo de silêncio
e usei os sentimentos como facas afiadas
separando a superfície do que não há por baixo,
expondo as múltiplas cascas do meu ser.
Diz-me o silêncio que mentem os que o querem fúnebre
mas eu sei que até as mentiras têm alguma verdade,
sei-o porque há silêncios becos-sem-saída,
silêncios com a consistência dos nossos maiores pesadelos.
Diz-me o silêncio que está cansado de usarem o seu nome
mas o pior cansaço está no perder dos horizontes
e ficar subitamente sem barco, sem mar e sem viagem.
Os silêncios são os vários rostos de mim mesmo,
os silêncios são feitos com todas as palavras omitidas
e por isso posso trazê-los a este poema,
sentar-me com eles como se estivesse numa mesa de café
e esquecer-me de mim para fingir que vivo.
Fascinam os cães que desenterram os cadáveres
e mesmo depois de terem assassinado todas as crianças
numa repetição macabra do massacre de Herodes
e terem destruído a esperança dos que sobreviveram
continuo o espectador sereno e silencioso
sentado no café sem mesas nem cadeiras,
continuo a escrever nos cadernos vermelhos
mesmo que já não haja ninguém para os ler.

Não sou insensível aos mortos nem à morte,
não julgo que, por ser poeta, sou imortal
e escaparei às balas e ao ódio dos homens,
não transformei a minha vida num volume de poesias
mas confesso que me fascinam os cães famintos
e fico a olhá-los como se tudo se resumisse a eles.