terça-feira, 26 de outubro de 2010

Traição

Traí o silêncio com todos os sons do desespero,
traí o princípio da insensibilidade,
traí-te quando te quis perfeita,
emoldurada num tempo dourado e falso.
Não sei se voltarei a recuperar a serenidade,
abandonei todos os projectos de invulnerabilidade
e não te quero imagem em relicário permanente.
Mesmo assim não há pior traição do que a morte.
Esqueço-me dos sinais, das palavras, das paisagens comuns,
esqueço-me dos dias irrelevantes e dos gestos insignificantes
que abriam novas perspectivas no nosso mundo a dois,
esqueço-me do som dos teus sorrisos,
da cor do teu cabelo nas tuas mãos
e das minhas mãos no teu corpo,
esqueço,
esqueço-me,
esqueço-me de mim.

sábado, 16 de outubro de 2010

Eu

Esgotei os dicionários para saber das palavras impronunciáveis,
esgotei-me na missão de explorar os silêncios,
perdi-me nos labirintos dos espelhos,
julguei que me encontrava no que diziam de mim
mas eram apenas ecos ou reflexos das minhas cavernas,
sei-me intermitentemente e em excesso,
persisto teimosamente na tarefa de não desistir
e recuso-me a contabilizar as perdas e os ganhos
porque a vida é mais do que uma questão de contabilidade.
Fui quem sou em muitas ocasiões diferentes,
fui muitos e no entanto permaneci o mesmo,
fui sem esgotar o ser, sempre em projecto,
sempre insatisfeito em busca de cumprir o sonho
ou os múltiplos sonhos que vou arquitectando.
Eu.
Podem as palavras expressar convenientemente a existência humana?

domingo, 10 de outubro de 2010

Precisamos todos de uma razão para viver
Porque a vida é um enigma que a si mesmo não se explica,
Uma equação da matemática dos sentimentos.
E no entanto há quem forneça regras,
Imponha caminhos e determine condições
E no entanto há pastores de rebanhos e rebanhos dóceis.

Precisamos todos de alcançar a felicidade
Mesmo que seja com diferentes mapas.
E no entanto há quem a venda engarrafada,
Há quem provoque holocaustos como única maneira de ser feliz
E no entanto há sempre aqueles
Para quem a sua felicidade implica a destruição dos outros.

Precisamos todos de ser mais humanos
Menos repletos de certezas, mais abertos.
E no entanto há quem detenha todas as verdades,
Quem seja o centro do mundo e arredores,
Um robô programado que aceita um único programa.

E ainda há quem proclame a superioridade do homem,
Esse bicho aflito que nem com a história aprende
Que a única lição de vida é viver plenamente
Sem nos anularmos nem ignorar os outros!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sobreviver

Sobram os dias vazios,
os dias recheados de inutilidades importantes,
os dias manchas a alastrar na parede
construindo um enorme mural de desespero.
Sobreviver não é tarefa de herói
e o corpo grita a ausência de outro corpo,
o corpo é pedra e faca, espuma depois da onda,
espinho que complementa a carne, ignóbil dor
como o são todas dores do sacrifício.
Sobram as palavras e os silêncios,
o lento mastigar das impossibilidades,
as imagens sombreadas de crepusculos.
Sobreviver não é assunto de poema épico
e tudo em mim recusa a crueldade do tempo,
esse relógio que tritura as engrenagens,
esse espelho da morte e das suas armadilhas.