sábado, 26 de fevereiro de 2011

Abri as sete portas míticas de Tebas
uma a uma, usando a força.
Por detrás da primeira estavam crianças que não choraram.
Conhecia-as porque elas habitavam as minhas memórias.
Assustavam-me os seus olhos sérios
de quem não sabe brincar
e a sua permanente e muda acusação.
Uma delas parecia-se vagamente com o meu pai,
tinha um ar circunspecto e triste
e olhava para mim como se quisesse recuperar algo que perdemos.
Por detrás da segunda porta esperavam-me as esfinges,
envelhecidas, cansadas das maldições do tempo.
Apesar de tudo não me agradeceram.
Na terceira e na quarta portas não havia ninguém
e o silêncio e o vazio escorriam pelas paredes nuas.
Passou depois um século em que hibernei
porque também eu preciso de descanso.
Nesse tempo Tebas desapareceu do conhecimento dos homens.
Por isso ninguém soube quando arrombei as últimas portas.
Os livros que lá havia queimei-os em inquisições privadas
e as coisas que vi prefiro esquecê-las.
Ficaram presas nas palavras as crianças e as esfinges.
Enquanto os outros senhores da guerra comemoravam as suas vitórias
eu tentava reconstruir Tebas e as sete portas
mas só sobravam escombros e a minha imagem,
reprodução imperfeita do meu pai,
esfinge que se esqueceu que um dia foi criança.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Não escrevo tudo quanto sou;
há uma diferença entre o sentido e o que é dito
e as palavras não são espelhos transparentes.
Aliás, sou o que sou tão descontinuadamente
que o que escrevo não acompanha o que vou sendo
e, por pudor, omito o que não quero saber de mim.
Não, talvez não seja por pudor
mas a verdade é que me escolho no que de mim escrevo
e, depois, quando me leio, quase que não me reconheço.
Não se trata de mentir ou de dizer a verdade,
já basta de explicarem tudo com os espelhos de Narciso;
eu sou apenas eu e o que vou acrescentando
não para ser mais interessante ou ideal
mas porque cada dia descubro mais de mim em mim
numa permanente viagem em que sou o viajante e o barco
e também o oceano onde navego
até chegar a mim, porto e origem de tudo quanto sou.
A minha Ítaca de um dia a ter sonhado,
ilha-mulher rodeada pelas águas do meu desejo,
só existe agora nos exercícios da memória
e reconstruo-a pedra a pedra com as palavras
mas nunca fui grande arquitecto
e é inútil querer recuperar o passado.
A minha Ítaca submergiu na tormenta dos dias;
dela sobraram os calendários e alguns rituais
que vou repetindo para me convencer de que ainda sou Ulisses
e navego em direcção à esperança.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Assim como há os devotos das fatalidades,
sempre prontos para confirmar o desastre,
também há os que enfiam a cabeça na areia
e se recusam a ser testemunhas de uma realidade ignóbil.
Não vivemos no interior dos livros,
as paisagens não têm que ser necessariamente cinzentas
ou arco-íris rutilantes pintados à mão,
deixemo-nos de eufemismos ou de censura nas palavras.
As palavras que usamos não são meros espelhos
fabricados para reflectir os nossos vazios interiores
e o destino não está à espera na esquina do tempo
como esfinge segregada nos nevoeiros do medo.
Devemos sonhar e lutar pelos sonhos
mas quando nos querem colocar em prisões de cristal
há que saber resistir à felicidade controlada
e exigir espaços amplos e horizontes novos.
Não é a morte a nossa natureza
e a rebeldia de Prometeu é a marca de Caim,
o sinal que reúne os homens em redor da esperança.
Podia, um dia
se não houvesse tantos ses nas intenções,
tantos medos revestidos de palavras
a soarem como passos numa sala vazia.
Podia ser diferente
se o tempo não se repetisse nos calendários
e não houvesse tantas memórias de pedra.
Podia talvez
se as circunstâncias fossem outras
e outro também eu, diferente do que sou,
diferente mesmo do que queria ser.
Podia?
Só se saberá se houver mudanças
e nada for igual no reflexo dos dias.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A poesia

Não, a poesia não substitui a vida
mas pode dizê-la ou menti-la,
pode ser promessa, memória ou elegia.
A poesia não serve para anestesiar a dor
ou para fingir paraísos por detrás dos espelhos.
A poesia não é um conjunto de versos que rimam,
sentimentos exacerbados, luares em excesso,
dores agudas de alma e mortes de amor.
A poesia não se constrói com suspiros,
langorosos queixumes ou martirizados silêncios.
A poesia não exclui o sofrimento
nem pinta a cidade de cor de rosa.
A poesia não tem que ser epopeia de heróis e deuses
ou patético panegírico de um candidato à eternidade.
Não, a poesia não substitui a vida
mas pode guardá-la na memória
com o poder das palavras misteriosas.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Sei que é inútil tentar encontrar-te nas fotografias antigas
de um tempo de antes de te conhecer.
Eras então mais jovem
mas agora que ultrapassaste qualquer idade
deixaram de ter importância os calendários.
As imagens são apenas imagens transitórias,
pedaços de um tempo que já só é memória.
Guardo as fotografias nas gavetas
junto com os poemas que escrevi para ti
mas é tudo tão inútil como fingir que se é eterno
só porque houve um tempo em que tu eras a minha felicidade.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Os homens perderam a inocência das crianças,
deixaram-na escorrer como água no deserto
ou quiseram controlá-la impondo-lhe regras e limites
até a reduzirem a um catálogo de conveniências.
Hoje, o que há nos olhos dos homens é um desespero surdo
e uma vontade absurda de se deixarem dominar pelo destino.
O que sobrou da infância está convertido em memórias
e todas elas são manipuláveis e cinzentas,
cubos com os quais construimos os arranha-céus dos nossos sonhos.
Dizem que há uma criança no fundo de cada um de nós
mas isso não é verdade:
ao crescermos à força afogamos a criança
e a esse assassínio chamamos realidade.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Senhoras e senhores, ouçam bem com atenção
que a poesia é funambulo de circo
e os leopardos verdes da memória
breve terão os despojos do dia para devorar!
Acreditem que a magia se vende nas drogarias
em pacotes com descontos especiais
e é sempre possível ter como brinde um sorriso
ou uma viagem para dois aos jardins da cidade.
As palavras são ursos amestrados
provenientes directamente da Sibéria
e até as crianças podem trazer pela trela
os monstros que habitam os pesadelos públicos.
Não queremos os silêncios cúmplices do medo,
não ficamos à espera de que o destino se cumpra,
somos muito mais do que pedras num deserto de sonhos.
A poesia é alimento e não veneno
e se querem algo para anestesiar a alma
têm a televisão e as conversas das esfinges.
A poesia é festa e circo e não velório
ou carpideira de funeral com pompa e circunstância.
Senhoras e senhores, mastiguem a poesia
e não façam dela flores para enfeitar a vida!

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Durante dezassete anos estivemos juntos sem intermitências.
Isto pode não ser um bom início de poema
mas a poesia não se faz só com palavras bonitas
ou sentimentos convenientemente embrulhados.
Foram só dezassete anos mas foram nossos
e nada nos pode tirar o que tivemos.
Há pequenas coisas insignificantes
que, por serem insignificantes,
acabam por ter uma importância enorme na nossa vida:
um sorriso, uma intenção de despedida,
o esboço de um poema num caderno de escola.
Obsessivamente, procuramos a imortalidade dos momentos insubstituíveis
mas a verdadeira imortalidade, a possível,
é a daquelas coisas insignificantes
que não guardamos na memória
mas que são a carne e o sangue dos dias.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Considerações menores sobre o amor

Ninguém é mestre do amor,
ninguém pode assegurar que o amor não arrasta consigo o sofrimento,
ninguém pode predizer quando ele acaba ou se inicia.
Podem-se escrever tratados e entretecer teorias complicadas,
pode-se até tentar racionalizar as coisas do coração
mas as palavras são insuficientes para expressar as emoções
e há sempre mais no amor do que aquilo que se diz
ou que se esqueceu de dizer porque não era altura certa.
Morre-se de amor só nos filmes românticos
mas são profundas as mágoas e os desgostos
e julga-se que nada mais tem sentido
porque o mundo tem a cor do nosso desespero.
Quem diz que o amor não magoa mente ou nunca sentiu o amor
porque o confundiu com o amor mesquinho por si próprio.
Não há receitas para a amor
mas quando tudo acaba fica sempre o ter-se amado
porque o pior é ter medo de amar
e, sem ter sofrido as cruéis penas do amor,
não passar de um cadáver ambulante a imitar a vida.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Normalmente desejamos o impossível
e a nossa tarefa de homens divididos entre o sonho e a realidade
é transformarmos a vida numa inquieta viagem.
Somos filhos de Ulisses e temos sangue de minotauro,
oscilamos entre o abismo e as promessas de céu,
repetimos incansavelmente as mesmas palavras
como se fossem portas para o desconhecido.

Normalmente somos bichos assustados,
fanfarrões, impertinentes, imitando os improváveis deuses,
perpetuando a violência e a crueldade como se fossem o destino humano.

O que é esta normalidade que nos pesa,
que nos transforma os dias em jogos de espelhos,
caleidoscópios de que não conhecemos os mecanismos?

Que memórias podemos usar
quando nos resumimos a páginas de um livro?

Irrita-me esta normalidade obrigatória
mas também eu estou prisioneiro das palavras
e habituo-me à pele dos meus dias,
à inexorável substituição dos calendários.

Irritam-me os rótulos e os panegíricos fáceis
mas acabo por me conformar à existência minha,
esta forma de ir sendo no interior dos labirintos,
quebrando vidros, desmontando crenças e sonhos,
remodelando o universo num projecto de papel.

Normalmente irritam-me todas as promessas de felicidade mansa,
todas as normalidades que se pretendem definitivas
mas até essa normalidade minha, feita de inquietação, me cansa
e por momentos suspendo o exercício da palavra
incapaz de encontrar qualquer sentido no contexto do poema.
Podem as palavras permitir a transsubstanciação da realidade?
Quando as palavras aparecem urgentes,
vindas do mais fundo dos profundos silêncios,
há uma magia que ultrapassa o visível
e que não se guarda na memória dos homens.

Podem as palavras transportar-nos para além das distâncias?
Quando as palavras ganham corpo de argonautas
e têm qualquer coisa da consistência das caravelas
viajamos nelas muito para além das ilhas do isolamento
e descobrimos o secreto prazer de não ter destino marcado.

Podem as palavras fazerem-nos alcançar a eternidade?
Também as palavras são corruptíveis, degradáveis
e são companheiras da inconstante memória,
aias insubmissas de uma tradição que se quis perpétua
mas que se alimenta da inquietação dos homens.

Amo as palavras não porque sejam perfeitas
ou mágicas ou caminhos de liberdade
mas simplesmente porque sem elas seria o impossível vazio,
o negro mais negro da insuficiência humana.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Tenho momentos de palavras e momentos de silêncio
mas a verdade é que os silêncios estão saturados de palavras
e todas as palavras têm a mesma matéria do silêncio.
Por isso não sei se me escondo por detrás das palavras
ou se me revelo nos interstícios angustiados do silêncio.
Talvez sejam de palavras os meus espelhos
mas neles a minha esfinge silenciosa não sorri
porque não foi concedida às esfinges a capacidade de sorrir.
Tenho momentos de palavras e momentos de silêncio
e ambos são profundos e inquietantes
deixando-me esgotado
como se tivesse viajado para além das distâncias.
Tenho momentos em que nem sequer sou eu
porque as palavras e o silêncio são estranhos a mim.
Não chamo a isto de destino
porque o silêncio das palavras ainda não inventou os nomes,
não penso muito nisso porque pensar cansa
e prefiro aconchegar-me em mim
como uma criança às portas da noite.