terça-feira, 31 de maio de 2011

Continuo obstinado a escrever-me nos cadernos dos dias.
Desenterro da memória pedaços desconexos de mim
mas não me consigo reconstituir em corpo inteiro
porque entretanto perdi o meu corpo
num qualquer cruzamento do tempo.
Desconfio dos espelhos concêntricos
e prefiro ser mestre e discípulo das palavras,
cativo-as, submeto-me a elas, convoco-as
até que elas dêem sentido às horas que passam.
Encontrar-me-ei no espaço entre as palavras e os silêncios
mas isso é tema que os meus cadernos não contemplam.
Éramos dois no pedaço da praia deserta. Amanhecia.
Teriam sido fáceis as palavras
mas naquele tempo tudo era novidade
e os nossos corpos faziam persistir o momento.
Nos teus olhos eu não me limitava a ver o meu reflexo
e, se me perguntassem, diria que acreditava no amor.

Continuávamos os dois na mesma praia. Anoitecia.
As palavras eram pesadas como pedras,
eu já não te olhava nos olhos com medo do inevitável
e as despedidas foram breves e inúteis.

De nós os dois nem sequer a praia sobreviveu.
Não é noite nem dia. O tempo passa simplesmente
com aquela crueldade que julgo pertencer aos deuses.

Não posso ter remorsos por ter tido o que tive,
não posso lamentar o tempo em que fomos dois na praia.

Qualquer dia vou libertar a areia que guardei dessa praia
e então talvez o tempo deixe de ser a minha prisão.
A pedra tem remorsos da ferida que abre na cidade,
remorsos que escorrem dos cartazes rasgados
e das luzes coadas pelas janelas semi-fechadas.
As palavras recusam aprofundar os nevoeiros
e são apenas sombras que encobrem outras sombras,
vestígios de silêncio e cadáveres contra vontade.
Com a pedra das palavras imagino a cidade,
reconstruo-a rua a rua, casa a casa
mas deixo por acabar o pátio da minha infância.
Quem me pode censurar pelo musgo que cobre a pedra
e pelas palavras que nunca fui capaz de usar?
Quem, a não ser eu, pode compreender a estátua
que vigia impassível a entrada e a saída da cidade?
Confesso, sou o que resta da cidade imaginada
e da poeira do meu corpo poderão ressuscitar sonhos.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Somos do tamanho das alturas a que chegam os nossos sonhos
e ainda maiores porque herdeiros do infinito
e da mesma matéria de que é feito o pó das estrelas.
As vidas não se fazem com lamentos
nem os espelhos podem albergar a dimensão humana
porque são feitos com a carne das esfinges.
Mesmo quando querem que os desertos sejam o nosso horizonte
há muita mais distância do que aquela que pintam nas paredes
e a viajem poder ser também o retornar à origem.

Apocalipse

Avançam as matilhas com as garras preparadas
e trazem consigo os nevoeiros do passado,
as sombras dos dias sombrios e desesperados,
o que restou dos sonhos triturados.
O futuro tem forçosamente que ser a repetição do que já foi
e o paraíso é uma nesga de terreno ao sol
nem que seja um simulacro de jardim por detrás das grades.
São múmias que apenas adensam o deserto em nós
e chegam a convencer-nos de que a esperança é um desperdício
porque já está tudo entretecido na vontade dos deuses.
Os maiores dramas passam-se no silêncio
e não há imagens deles a preencherem os ecrãs.
É impossível escrever todos os nomes no muro das lamentações
e algumas vezes as vítimas e os carrascos são os mesmos
aproveitando a mudança da situação
e aperfeiçoando os gestos e os gritos.
De tanto se mediatizar a violência
transformou-se a dor em hábito banal
e construíram-se edifícios de desculpas
para confirmar que a morte de alguém é apenas estatística.
Os maiores dramas não são publicitados
porque só o sofrimento encenado é espectáculo
e as vítimas que não são fotogénicas
devem absolutamente permanecer no anonimato.

sábado, 21 de maio de 2011

O Homem

O Homem:
esse bicho aflito,
esse animal absurdo,
essa fronteira ambígua entre o nada e o infinito.
Enigma, equívoco,
erro de cálculo dos deuses
ou apenas um pormenor do Universo?
Sísifo ou Prometeu,
Ulisses que recusa a submissão aos deuses
e faz da viagem os alicerces da liberdade,
o Homem não cabe numa equação cabalística
e é mais profundo do que qualquer silêncio.
O tempo e a memória são a nossa condição
e temos a obrigação de renovar a esperança.
Peço desculpa por não ser aquilo que gostariam que fosse,
peço desculpa por não preencher a minha vida com verdades
e viver à sombra delas
tendo sempre uma desculpa à mão
para explicar a minha cobardia de homem frágil.
Sei que seria mais fácil se ao menos fingisse,
se disfarçasse a minha inquietação
e usasse um espelho em lugar da identidade.
Peço desculpa por persistir em ser quem sou
porque me ensinaram a ser fiel a mim
e a não trocar a procura pela comodidade da resignação.
Peço desculpa mas continuarei a recusar o destino
e tentarei construir a minha liberdade.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Não me peçam para ser feliz à força,
simplesmente não me queiram à vossa semelhança,
fiel devoto das futilidades convertidas em verdades.
Cada homem escolhe os seus próprios caminhos
e só depois de os percorrer
é que poderá saber se eles são à sua medida.
Como dizia o poeta António Machado,
é com os nossos passos que construimos os caminhos
e somos os roteiros percorridos
e aquilo que ainda falta percorrer.
Nos livros, as vidas parecem mais nítidas
mas não há nenhuma vida por empréstimo
e ninguém alcançara os horizontes em nosso nome.
Talvez eu esteja errado e vós estais certos
mas só mudarei de rumo quando disso estiver convencido
e não porque me prometeis tentadores paraísos.
Agradeço o vosso interesse mas prefiro ser eu a escolher
porque a vida é minha
e estou pronto a pagar as consequências das minhas escolhas.
Sei que gostariam de me ver feliz,
de me ver mais parecido com os vossos espelhos
mas existe em mim uma inquietação
que me obriga a tentar simplesmente ser quem sou
sem me procurar nos catálogos das vidas programadas.
O espaço e o tempo são ilusões perigosas,
dizem os que preferem a tranquilidade das cavernas
e se habituam às imagens que espelham o seu vazio.
Livrai-vos de desejar o impossível,
repetem em ladainha os cultores da mediocridade,
todos os que se contentam com as sombras
e vivem nos escombros das casas que foram seguras.
Eu, que não acredito nos seus paraísos com grades nas janelas,
sou a ameaça, a inquietação e a raiva,
viajo destruindo as barreiras e os limites,
desafiarei a morte ao não aceitar a passividade dos desistentes.
Que me importa se ainda existem inquisições nos olhares escandalizados
de quem me preferia subjugado, fiel a uma qualquer verdade?
Eu, que não sou santo nem demónio
e moro onde mora a minha liberdade,
sou a subversão, a criança que teima em perguntar
mesmo quando insistem em que todas as respostas foram já dadas.
Que me importa o futuro na forma de paraíso
se por causa disso houver injustiça e morte?
Eu, que não faço parte de nenhum rebanho
e não sou candidato a profeta ou a líder de causas,
imagino que um dia acabará a escravidão
e teremos o mundo que os deuses nos proibiram.
Que me importa que digam que sonhar é próprio da infância
só para me obrigarem a aceitar a condição de cadáver adiado?
Não quero trocar as cores do desejo
pela segurança de uma coleira bem apertada,
não quero que digam que fui bem comportado
à imagem e semelhança dos modelos institucionalizados.
Que me importa que sejam muitas as regras e as proibições
e os memoriais estejam atafulhados de castigos?
O espaço e o tempo são o oceano onde navego
e desejo tornar real o impossível
sem no entanto me ambicionar conquistador de um qualquer paraíso.

sábado, 14 de maio de 2011

O que é que se pode dizer de uma filha que faz vinte anos?
Só me lembro da música de Serge Reggiani
mas as coisas não são exactamente como as da canção,
a realidade tem sempre mais perspectivas do que as da poesia.
O que é que se pode dizer a uma filha que faz vinte anos?
Sinto que todas as palavras são inconvenientes
e os silêncios não são necessariamente sinais de sofrimento.
Sinto que muitas vezes as palavras são inoportunas
e não reproduzem a profundidade dos sentimentos.
O tempo persiste na memória
e continuaremos a combater a morte.
Carrego o peso dos meus sonhos e das minhas desilusões,
igual a todos os outros homens:
pequeno na mesquinhez dos espelhos concêntricos
e infinito nos horizontes que transbordam muros.
Transporto a inquietação como uma chama acesa
mas recuso as cinzas dos quotidianos mortos.
Tenho o vício de mastigar as palavras,
remoê-las, mantê-las na caverna da boca
e depois deixá-las navegar no branco das páginas.
Não sei se o tempo será indulgente comigo
e continuo a não desejar o favor dos deuses
ou sequer a planificar um paraíso privado.
Basta-me a consciência e a memória
e estou tranquilo na minha inquietação permanente
de quem se busca para além dos livros e das receitas consagradas.