quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Um poeta aconselhou "sê inteiro"
mas como posso se sou feito de múltiplos fragmentos,
se a vida que tenho é composta de estilhaços?
Nem sequer no que escrevo posso ser inteiro
porque as palavras são uma mistura de areia e água,
porque os momentos se ossificam nos seus reflexos
e não gosto de me ver exposto numa folha de papel.
Nem sei mesmo se quero ser inteiro
como um bloco de pedra imperturbável
ou um iceberg que só o tempo consegue transformar em água.
Acumulamos raivas, mágoas e penitências,
entretecemos os dias com os rosários dos silêncios
e quando a noite desce sobre as nossas casas fechadas
sonhamos os nossos pequenos sonhos encaixotados.
Usamos as palavras como se tivéssemos receio de revelar os sentimentos,
reverenciamos o passado e tudo o que é maior do que nós,
fingimos que vivemos só porque é decente fazê-lo
e ninguém acreditaria se fossemos loucos e humanos.
Apesar de tudo amamos com furor e desespero,
amamo-nos, amamos aqueles que nos são próximos,
amamos os estranhos e a distância, amamos o amor,
amamos até a falta de quem estávamos habituados a amar.
Por amor somos absurdos, disparatados, além das regras,
por amor somos profundamente humanos.

sábado, 26 de novembro de 2011

Herança

Herdei a insatisfação do ser humano,
incompleto animal que se questiona,
fascinado pela esfinge e os seus enigmas.
Herdei o panico diante do vazio
e a impotência de alguém que não aceita a morte.
Herdei uma biblioteca de palavras
e o desafio de com elas traduzir a vida
sabendo que tudo o que é dito é apenas um pormenor
e que o silêncio tem a consistência dos nevoeiros.
Herdei esta curiosidade que me faz ser inconveniente
e incomoda como um espinho no interior da carne.
Herdei dois mil anos de cultura
e outros tantos de raiva, violência e dor
mas teimo em preservar a esperança
porque acredito no poder da memória
e gosto de pensar que o futuro pode ser a nossa casa comum.
Chamo-te com a voz do meu silêncio,
chamo-te para além da barreira das distâncias,
procuro-te no vazio das imagens,
procuro-te nos interstícios da memória.
Amo e odeio as palavras,
amo-as quando te trazem aqui ao papel
e detesto-as porque te mentem na impossibilidade de existires.
Não regressarei à Ítaca da minha segurança,
a voz com que te chamo é a do náufrago
que sabe que todas as viagens são impossíveis.
Continuo a chamar-te sabendo que não haverá reencontro
e que o tempo converte a vida numa memória dela.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Quem me ler poderá pensar que me estou a lamentar
ou que transformei os dias num perpétuo sofrimento,
quem me ler poderá ter de mim a imagem de um romântico,
uma personagem bizarra do século XIX,
um poeta dos luares e das folhas caídas
prenunciando outonos de chuva e de tormentos.
Não estou fascinado pelos falsos espelhos
nem pretendo ultrapassar o aborrecimento através da dor,
não me escondo na penumbra das palavras
como se elas fossem cortinas entre mim e a realidade.
Quem me ler poderá até sentir os nevoeiros
mas esses nevoeiros não são meus
porque não espero os heróis que irão resgatar o futuro
nem sou um dos carneiros do rebanho dos deuses.
Gostaria apenas de ter forças para resistir ao esquecimento.
Entre o que fui e o que sou há um nevoeiro
e nele são várias as imagens de mim que desconheço.
O tempo que passou trouxe distâncias,
destruiu sonhos, fechou a maior parte das janelas
e fiquei como a criança no quarto escuro
sem sequer poder lançar o pião no pátio,
aquele pátio interceptado por quatro muros altos
que foi o meu mundo até deixar de ter um mundo meu.
As palavras tornaram-se mais amargas
e têm o sabor das pedras e das coisas inanimadas
mas mesmo assim são utensílios para manter a esperança
e posso através delas recuperar a memória.
Entre o que fui e o que sou faltas tu
e isso é suficiente para me sentir vítima dos silêncios.
Sei perfeitamente que há vidas mais desgraçadas do que a minha
e que apesar de tudo me posso considerar privilegiado,
sei-o, mas isso não me faz deixar de sentir o que sinto,
solitário viajante no interior dos seus próprios desertos,
último dos últimos guardiões dos segredos,
feiticeiro que não consegue descobrir a cura para o sofrimento.
Não espero redenção ou perdão dos deuses;
limito-me a resistir ao desespero
e conservo a memória de tudo o que foi nosso.
Não foste a minha Penélope
nem eu pude ser o teu Ulisses enfim regressado da viagem.
Fomos apenas o que foi possível,
aquilo que o tempo nos permitiu.
Depois de ti não me refugiei nos espelhos de Narciso,
guardo memórias, fotografias, objetos inúteis,
guardo tudo aquilo que ainda não foi corrompido pelo esquecimento.
A nossa história não teve um final feliz
mas não culpo os deuses insensíveis na sua imortalidade
nem me considero a vítima de todas as tragédias.
Não foste Penélope nem eu sou Homero para te perpetuar no poema.
Depois de tantos silêncios há ainda palavras que doem
e não há maneira de as evitar
porque elas fazem parte da memória.
No entanto continuarei a escrever,
não como quem cumpre um castigo
ou procura esquecer o que não foi possível
mas simplesmente como quem continua vivo
e recusa aprisionar as imagens por detrás dos espelhos.
Não podemos passar a vida a enterrar os nossos medos
ou a esconder sentimentos em palavras ocas.
Colecionei silêncios como quem coleciona aviões de papel
ou soldadinhos de chumbo de guerras desconhecidas
e agora que tenho uma casa cheia deles
continuo a sentar-me à secretária
a conviver com todas as palavras,
mesmo com aquelas que ainda me magoam.
Se tive uma memória de água ela transformou-se num deserto
mas entretanto a esfinge ausentou-se para parte incerta
e nunca fui capaz de me descobrir nos nevoeiros
mesmo quando os outros retiram deles os cavaleiros andantes,
os castelos de vento e as donzelas de serviço.
Os adamastores perderam-se nas esquinas do tempo
deixando vestígios de algas e uma concha vazia,
deixando a criança que fui na orla da praia
a escrever na areia os mesmos sinais indecifráveis.
Se tive um sonho de infinito esqueci-o
e não tenho a certeza de querer recuperar a memória
porque o tempo tornou mais pequena a casa
onde só o aquário vazio faz lembrar a criança
que um dia abandonou a praia
e os sinais que continuam indecifráveis.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Começa tudo com um silêncio que parece uma voz distante
e, sem saber como, o espaço preenche-se de espelhos
sem que eu neles possa ver a minha imagem.
Não durmo mas também não estou acordado,
nem sei se sou ainda
ou se apenas finjo de fantasma de mim mesmo.
Desço ou subo as eternas escadas dentro da minha cabeça,
habito simultâneamente as várias casas da minha memória,
debruço-me da janela com vertigens e cobardias
e adivinho que chove num sítio qualquer deste universo.
Acabo sempre por descobrir que a voz tem corpo de estátua
e o silêncio é feito destas palavras que insisto em escrever.
Tenho profundas saudades da vida que tive
e que só agora sei que foi feliz
porque na altura estava mais preocupado com o futuro
e tinha pressa de atingir já não sei que horizontes.
Tenho profundas saudades de tudo o que fui,
não porque considero que foi tudo bem feito
mas pela impossibilidade de o voltar a ser.
Mas o que é mais doloroso são as saudades de ti,
a insuportabilidade da tua ausência,
a crueldade de ter que viver para além da tua morte.
Sou viciado nas palavras,
venero-as, exorcizo-as, deixo-as arder
nas chamas e nas cinzas dos dias,
instalo-as em altares que depois destruo
só para sentir o desespero dos desiludidos,
deixo que elas se apossem dos meus segredos
mas não permito que ocupem a minha imagem nos espelhos
porque tenho medo do que há depois do esquecimento.
Há muitos mundos diferentes dentro da minha cabeça
e são todos meus
mas por qualquer razão que desconheço
são outros os que habitam neles,
são outros os heróis e os vilões das minhas histórias.
Nunca sei como acabam as histórias
e os mundos confundem-se nos nevoeiros das palavras.
Nunca quis ser imperador dos meus mundos,
nunca sonhei finais perfeitos e paraísos desinfetados
mas por vezes sinto-me estrangeiro em mim,
alguém que se enganou nas páginas de um livro.
Há muitos mundos diferentes dentro da minha vida
e as palavras são apenas o passaporte para a viagem
sabendo que ficarei irremediavelmente nas suas fronteiras.

domingo, 13 de novembro de 2011

Sabes, foram muitas as palavras que não te disse,
foram muitas as coisas que deixei de fazer contigo
e todas as impossibilidades doem no mais fundo da carne.
Sabes, nada mais foi como seria
e hoje sou sem ti apenas a metade.
Agora já não são possíveis as palavras entre nós,
de ti só tenho a ausência e a memória
mas sei que sabes que estarás sempre comigo.
Tenho medo de me esquecer de ti,
de te perder definitivamente nos nevoeiros da memória.
Com o tempo a tua imagem empalidecerá
e a nitidez de tudo ficará apenas nas palavras
mas também elas são impotentes para combater a distância.
Enquanto poder resistirei ao esquecimento,
resistirei a este insuportável sentimento de abandono
e estarás comigo sem envelheceres no tempo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Gosto do silêncio mas creio que não poderia viver sem as palavras,
sem o corpo delas vestido de medos e desejos,
sem a expetativa de as ver chegar de improviso
abandonando-me logo que persisto em fazer delas minhas prisioneiras.
Gosto das palavras quando elas são a nossa pele
e não quando servem de biombos,
gosto das palavras que não se transformam em gritos
nem são farpas a prolongar a violência.
Gosto das palavras que não nos escondem por detrás dos espelhos,
gosto quando adormeço na sua companhia
porque sei que nunca estarei sozinho.
Há distâncias impossíveis que nos separam
e ainda luto para não perder a tua imagem.
Tenho medo de que a memória se transforme em areia
e escorra no interior das palavras ocas,
esqueletos a recordar o que foi a carne dos dias.
Tenho medo de que a vida se transforme em banco de espera
sem nunca saber se o comboio está atrasado
ou se fui eu que me atrasei no momento.
Há distâncias impossíveis que não cabem nas palavras
mas resistirei ainda e sempre ao esquecimento.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Cartas de amor

Também eu escrevi cartas de amor
mas só me sinto ridículo por não as poder continuar a escrever,
sinto-me enganado por um tempo que não teve misericórdia
e passou deixando as cartas de amor que ninguém lê.
Tenho-as na gaveta no fundo de um armário
e é como se elas estivessem no fundo da memória
num lugar inacessível mas ainda assim presente.
Não as queimei mas é como se o tivesse feito
só que o calor das suas cinzas imaginadas
cristalizou-se nos múltiplos fragmentos das imagens.
Escrevi cartas de amor, confesso
e penso que ridículos são os que nunca amaram.
Antes de os silêncios serem só os sinais do desespero
eu imaginava-os com corpos de palavras,
tentadoras sereias a prometer viagens.
Antes de o tempo ficar cristalizado na memória
eu era maior do que a minha realidade
e ainda assim sentia vertigens do futuro.
De muitos antes e depois se faz uma vida proibida
e eu sinto que já não tenho mais tempo nem silêncios.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Sou um vagabundo das palavras,
persigo-as mas sinto que elas são a minha miragem
e estou perdido num labirinto sem paredes,
lugar que sobrou da última residência de Polifemo.
Outrora as palavras eram as fronteiras da minha segurança
e eu era o rei de um reino de sonhos
mas depois os céus desabaram sobre o meu corpo nu
e as palavras não me protegeram do desespero
porque eram elas próprias o desespero.
Outrora a memória não era feita de palavras
mas agora sei que o tempo tem regras próprias
e serei sempre vagabundo da vida que queria ter.