quinta-feira, 30 de junho de 2011

Se alguma vez sonhei ser um cavaleiro andante
em busca de um qualquer santo Graal
penitencio-me.
O meu destino é não ter destino,
partilhar a condição das vítimas da Inquisição,
ser perseguido, sobreviver no gueto de Varsóvia
só para justificar a crueldade dos meus inúmeros carrascos.
Não fui talhado para os paraísos de encomenda
com velas, anjos, arcanjos e espíritos sem corpo
mas não esqueço os infernos reais que construíram
em nome das mais diversas crenças e razões.
Se alguma vez sonhei ser mais do que humano e mortal,
anjo ou demónio, o que sobrou das ilusões dos deuses,
penitencio-me.
Se sobreviver será na memória das palavras
e não terei remorsos por ter procurado a felicidade.
Há uma sabedoria profunda nas palavras
povoada de enigmas, paradoxos e becos sem saída.
Há uma ignorância perigosa nas palavras,
a ilusão de que elas podem substituir a vida.
As palavras não são espelhos nem instrumentos dóceis,
as palavras não são metáforas de metáforas
ou colares de pérolas que alguém roubou aos deuses.
Se não houvesse em nós tantos silêncios
como poderíamos ainda acreditar no poder das palavras?

terça-feira, 28 de junho de 2011

Nietzsche e Zaratustra

Dizem que Nietzsche enlouqueceu no cansaço de Zaratustra
mas muito tempo antes da morte dos deuses
já os dois tinham consciência de que o tempo é uma maldição.
Zaratustra preferiu converter a sua revelação em silêncio
e com ele forjou as janelas do esquecimento.
Nietzsche ficou porém prisioneiro das palavras;
foram elas que lhe contaram da traição de Zaratustra,
foram as últimas companheiras nos claustros da morte.
Nietzsche e Zaratustra, nenhum dos dois sou eu,
nenhum deles é o alicerce do meu mundo
porque escolhi um mundo sem fronteiras
e sem muros a impedir a liberdade da distância.

Zaratustra

Zaratustra é o nome que damos à nossa vontade de ultrapassar a superfície da vida
e mergulhar na vertigem de um tempo que ciclicamente se repete
e subir à mais alta das montanhas das nossas ilusões.
Zaratustra tem o sabor do mel das abelhas selvagens
e a violência de uma tempestade inesperada de Verão.
Zaratustra é um mago que denuncia a inutilidade da magia
e aponta o dedo aos feiticeiros que se julgam superiores aos seus rebanhos.
Nas palavras de Nietzsche, Zaratustra é sinal de mudança,
anúncio de um novo tempo que anula o próprio tempo.
A mim fascina-me o falso misticismo de Zaratustra,
a sua falsa inocência, a sua falsa simplicidade.
É Zaratustra ou Nietzsche quem nos convoca para abandonar o espelho
em troca de uma verdade que pode até mentir quem não seremos?

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Em dia de exame de Matemática

As contas da vida cada vez são mais difíceis de fazer:
éramos dois e fiquei só eu
numa operação sem raízes quadradas ou hipotenusas,
tínhamos sonhos e ficou a memória deles,
memória fragmentada e prisioneira das palavras.
Nunca fui bom a matemática
e não estou disposto a multiplicar mágoas
ou a dividi-las por ilusões perigosas.
Nunca se devem somar os sofrimentos
ou subtrair a vida ficando apenas com os reflexos.
Quando nos reduzimos a contabilistas do deve e haver
o enigma que fomos fica cristalizado num espelho
à espera do momento em que alguém o venha quebrar
estilhaçando a esperança e o que de nós restar.
As contas da vida são por vezes surpreendentes:
julgávamos que os dias tinham superfícies transparentes
e quando os reunimos num caderno de impressões
descobrimos que nele há muito mais do que horas e minutos.
Razão teriam aqueles sábios improváveis
que defendiam que não se podem substituir as almas por números
ou vice versa
porque o universo é maior do que um livro
mesmo que o imaginemos com as páginas em branco.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Ainda me dói a possibilidade dos dias diferentes
e essa dor surda e persistente arranha-me a alma
ou aquilo a que antigamente chamavam alma
porque não sou dado a esses sentimentos metafísicos.
Não é minha intenção transformar a dor no meu destino
mas serei sempre o que sobrou da tua ausência.
Não é possível revestir completamente a dor de palavras
e mesmo que o fosse isso não aliviaria a dor
nem tornaria as realidades trágicas mais aceitáveis.
A dor é dor apesar das palavras e das metáforas
e não cabe no poema as fronteiras da mágoa
porque tudo o que está para além do silêncio é indizível.

domingo, 19 de junho de 2011

E quando, por detrás do tempo, me chega a tua voz
eu estremeço na nudez dos meus sentimentos.
Ainda tenho estilhaços dos dias interrompidos
e continuo a querer reconstituir a imagem
sabendo que o tempo deixou de ter magia
porque as coisas são feitas da poeira das palavras.
A tua voz tem o poder do silêncio e da impossibilidade
mas não recupera os estilhaços do tempo.
É perigoso explorar as margens do silêncio;
encontramos os nossos medos e paisagens desertas,
desenterramos os espelhos partidos e os brinquedos esquecidos,
regressamos à casa velha e aos quartos escuros.
Por mais serenos que pareçam ser os silêncios
eles escondem pesadelos e engrenagens soltas,
ameaçam a nossa previsibilidade
abrindo espaços entre a nossa pele e a realidade.
Os silêncios têm a teimosia da chuva intermitente
e por isso são perigosos como sereias misteriosas.
Os silêncios segregam nevoeiros
onde se adensam os nossos nevoeiros interiores.
É perigoso ultrapassar os limites do silêncio,
não porque haja esfinges ou árpias a anunciar a morte,
mas por ficarmos sozinhos com nós mesmos
sem encenações ou grandes frases de ocasião.
Os silêncios são os nossos íntimos reversos
e é sempre perigoso olhar para nós sem ser nos espelhos.

domingo, 5 de junho de 2011

Quem não tem medo das esfinges,
essas mulheres de sal e areia
que vivem nos nossos desertos interiores?
Nem mesmo Édipo escapou aos seus sortilégios
e o enigma do homem tornou-se mais pesado do que um destino.
A única esfinge que conheci estava disfarçada de estátua
e na sua origem o vazio ocupa o lugar da memória.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Não escrevo para me consolar da vida que não tenho
ou dos sonhos de que tive que desistir.
Não escrevo para recuperar o meu pesadelo de esfinge
ou disfarçar a areia de um deserto por detrás do espelho.
Não escrevo porque o tempo me falta
ou porque me cansa a miragem de uma imortalidade de papel.
Escrevo apenas porque escrevo
e isso não me transforma num esboço de destino.
Os paraísos transitórios a que conseguir chegar serão privados
e deles não ficarão registos nas folhas dos dias.