sábado, 31 de dezembro de 2011

O calendário assinala que acabará um ano e começará outro.
Já foram tantos aqueles que vi passar
e mantenho a esperança de que o próximo será melhor,
mantenho apesar de tudo a confiança no futuro.
Ou isso ou ficar paralisado no tempo
convertendo as memórias em sacrários,
ou isso ou teimar em ignorar os calendários
como, se ao não termos consciência deles,
os dias deixassem efetivamente de existir.
Obviamente não farei festa,
beberei o champanhe na minha solidão
mas não deixarei de sonhar com um novo ano mais feliz.
Ainda é Natal?
Repetem-se as palavras e as imagens
mas a sensação já não é a mesma
e olho para a árvore sem qualquer sentimento de novidade.
No entanto continuo a sonhar com a neve
e com o trenó do Pai Natal a descer a rua
escorregando incólume entre os transeuntes espantados.
Deixei de colocar o sapatinho na lareira
e as prendas que dou e recebo são objetos comerciais,
substitutos dos sonhos que se foram perdendo.
Insisto em ouvir as mesmas velhas melodias
numa tentativa absurda de recuperar o tempo da infância
mas essas melodias fazem-me apenas sentir mais velho.
No entanto consigo imaginar a neve
e um único floco imaculadamente branco fica preso na janela
à espera que eu resolva combater os meus fantasmas.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Fado

Este é o nosso fado,
esta é a tristeza que se desprende dos nossos gestos e das nossas palavras,
este é o destino que os deuses reservam a quem sente em demasia
e vive excessivamente os seus próprios sentimentos
mesmo que a maior parte deles sejam fingidos.
Continuamos a ser o país de velhos marinheiros
mas os búzios já não prometem as distâncias
e temos sonhos de funcionários públicos.
Apagaram-se as estrelas que tínhamos nos olhos,
deixamos as crianças crescer demasiado depressa
e convertemos as ladainhas em poesias.
Este é o fado da nossa história,
conquistadores do nada, construtores de infinitos,
monges-guerreiros em busca da esperança.
Quem nos cantará quando só houver silêncio
e as memórias forem devidamente retificadas
para fazer parecer que afinal há paraísos?
Com quantas palavras é construída a vida de um homem?
Por vezes basta uma e tudo o resto é silêncio,
tudo o resto é tão inútil quanto as memórias fabricadas.
Nem sempre porém são nítidos os vocábulos
e gasta-se o tempo a decifrar sinais ou a ausência deles.
Não quero viver obcecado pelas impossibilidades
mas desistir dos sonhos é morrer antecipadamente,
enterrar todas as palavras num funeral encenado
e ocupar o sarcófago do silêncio com as sombras do esquecimento.
Não sei quantas são as palavras necessárias para construir uma vida
porque não há dicionários prontos nem receitas infalíveis.
Prefiro acreditar que não são as palavras que dão sentido à vida;
a vida ilumina por dentro as palavras e não pode ser substituída por elas.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

É Natal

É Natal anunciado, Natal de crise,
Natal dos anúncios falsamente alegres,
Natal das boas intenções e dos cânticos,
Natal das recordações junto à lareira
mesmo que não haja lareira nenhuma.
No ano passado o Natal foi diferente e igual
como será igual e diferente o do próximo ano.
Há algo de inalterável em todos os natais,
só nós é que mudamos lentamente,
tão lentamente que pensamos que ainda somos os mesmos
e que o Natal foi feito de propósito para nós.
Ainda não trouxe a árvore da cave,
a casa mantém o aspeto habitual
e só acenderei as velas coloridas no dia vinte e quatro.
Apesar de tudo também haverá um Natal para mim,
diferente e igual a todos os que tive e irei ter.
Na alfandega da vida inspecionaram as minhas bagagens
e só encontraram memórias e objetos inúteis
porque entretanto desisti das viagens
e fiquei num banco de jardim como um marinheiro reformado.
Limito-me a ver as ondas a embater na praia
e tenho o espaço de horizonte que me é permitido.
De vez em quando ainda tenho saudades das distâncias,
de vez em quando penso que tudo podia ser como era dantes
e imagino-me criança no pátio da velha casa.
Como toda a gente, tive sonhos épicos
mas agora sobrevivo aos dias cinzentos
sem remorsos, sem tragédias de papel.
Quando passar outra vez na alfandega
verão que abandonei os objetos
e reconstruí as memórias com palavras e silêncios.
Vive-se entre o desespero e a sombra de um sonho.
Vive-se ou julga-se que se vive
e pode até haver dias quase esplêndidos,
parecidos com aqueles que há nos livros.
Guardamos os calendários anotados nas gavetas,
temos o cuidado de não perceberem em nós sentimentos profundos
porque assusta ver nos olhos dos outros a nossa própria ansiedade.
Fazemos da morte um ritual em que somos apenas espetadores
e as memórias são construídas como puzzles de palavras.
Vive-se na indecisão entre o nevoeiro e a luz
é a única certeza é de que não há paraísos permanentes.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

E agora José,
que sonhos, que caminhos, que viagens?
Parece que só há muros onde dantes havia horizontes
e os espelhos não me devolvem as imagens do futuro.
Os relógios estão atrasados no momento
e já não consigo abrir a caixa secreta
para substituir as peças e renovar os dias.
Eu, que gostei tanto dos labirintos e dos seus enigmas,
estou prisioneiro de um feito de sombras
mas já não há cavaleiro que mate o dragão em mim
nem há donzela para salvar dos perigos.
E agora José?
Terei que responder dia a dia a essa pergunta.
Da minha janela vejo um gato preto num quintal vazio.
O gato desloca-se livre e preguiçosamente
arqueando ao de leve o lombo entre as ervas molhadas.
Enquanto acerto o relógio pelas horas oficiais
fico a vê-lo a passear-se pelo seu espaço infinito.
Invejo a sua ausência de obrigações,
invejo a naturalidade dos seus movimentos.
Relutantemente fecho a janela e saio do meu quarto.
Talvez o gato continue no quintal
mesmo agora que estou longe de casa e escrevo sobre ele.
É verdade que gosto de gatos
e que não tenho qualquer superstição com gatos pretos
mas isso não dá um significado especial a esta poesia.

sábado, 3 de dezembro de 2011

A bordo de um barco em direção a Ítaca,
levando comigo os fantasmas de Ulisses
e a perspetiva de uma ilha escondida na névoa.
Recordo os dias perdidos no diário de bordo,
recordo os sons diluídos pela distância
e o eco da tua voz a ultrapassar o tempo.
No porão guardo as arcas que trouxe da velha casa
e as memórias que sobraram da infância.
No topo do mastro mais alto perscruto o horizonte
apesar das vertigens e do nevoeiro.
Sei que passou o tempo das viagens
mas continuo no barco do meu corpo
em direção a Ítaca, em direção à esperança.
Há histórias de amor que são banais
e outras que não o são porque acabaram cedo.
São essas as que nos interessam e nos perturbam,
são essas as histórias que justificam as nossas rotinas.
É bom saber que há Romeus e Julietas
e que não somos nós quem tem que morrer de amores
porque mesmo sendo de amores é preferível evitar a morte.
Dizemos que os amantes infelizes são infortunados,
sofremos também um pouco com os seus desesperos
mas depois regressamos à vida e à realidade,
preferimos que a nossa história de amor seja banal e longa,
adormecemos imaginando que nunca haverá separação.
Passamos a vida a esconjurar demónios
mas não nos livramos dos medos e das impotências
e por isso inventamos paraísos que são armadilhas,
espelhos que distorcem as nossas imagens.
Quando eu era pequeno queria ser crescido,
queria não ter medo do escuro e dos fantasmas
mas cresci e continuo com medo do escuro,
transformei-me em fantasma de mim mesmo.
Passamos a vida a inventar desculpas
e o silêncio tem arestas que ficam nas palavras.
No entanto, agora que o tempo passou
e abandonei a casa, o pátio e a criança,
tenho uma gaveta cheia de segredos
e promessas de futuro que não cabem numa só vida.
Desço às escuras as escadas do meu sonho
até chegar à cave onde estão as caixas dos segredos
mas há esfinges em cada esquina do labirinto
e não tenho a certeza de querer continuar a viagem
porque tenho enjoos e perdi o mapa.
Desço interminavelmente sem saber as horas,
sem saber que tempo decorreu desde a partida,
sem saber mesmo se os relógios continuam a funcionar
no interior desta casa que é a minha herança.
Desço enquanto espero o final do sonho,
suspenso que estou nas teias de uma memória construída,
desço como se ao acordar fosse esquecer a casa
e enterrar de vez todas as caixas dos segredos.