sexta-feira, 3 de agosto de 2012

De muitas coisas se fazem os dias:
desesperos, raivas, felicidades súbitas e breves,
silêncios disfarçados de palavras inúteis,
fragmentos de memórias construídas ou retificadas.
Os relógios marcam o tempo no exterior das sensações,
os relógios fazem tiquetaque nos nossos nervos,
os relógios são cúmplices dos carcereiros.
Tenho vários relógios com horas diferentes
e assim nunca estou atrasado no momento
nem tenho a petulância de quem está sempre certo.
De muitas coisas se fazem os dias:
esperanças, desistências, queixas e louvores,
relatórios que se tornarão esquecimento
mesmo antes que a morte nos venha surpreender.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Há coisas piores do que não ter nada para fazer.
Pior seria querer fazê-las e não o poder,
pior seria pensar que seria obrigatório fazê-las
e não ter a força nem a vontade de as fazer.
Deixar passar as horas como se elas fossem exteriores a nós,
anestesiar os próprios sentimentos,
deixar de ler os livros que poderíamos ler,
ser livres à maneira de Fernando Pessoa
sem remorsos, desculpas ou poemas de conveniência.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Demasiado breves foram os dias que passamos juntos,
demasiada é a distância que nos separa, insuperável
e nem mesmo a memória pode trazer-te aqui
a não ser em imagens retiradas as sombras.
Mesmo que fosse longo o tempo e curta a distância
nunca seria o suficiente,
nunca nos contentamos com o que temos,
ninca fazemos tudo quanto devíamos,
nunca a vida nos parece igual ao que dela sonhamos.
Foi breve o tempo que nos foi concedido
mas não o trocaria por uma qualquer eternidade sem ti.

terça-feira, 22 de maio de 2012

São rosas, senhora, são rosas
mas não substituem o teu corpo perdido
nem são promessas de futuros impossíveis.
Foste tu que as plantaste nos canteiros improvisados
e teimam em desabrochar todos os anos
apesar de eu me esquecer de tratar delas.
Aliás nunca fui grande admirador de plantas
e ignoro o significado e o nome das flores.
Sinto que seria um crime colocá-las numa jarra
mas esse sentimento é absurdo e inexplicável
como todos os sentimentos que tenho.
São rosas,senhora, são rosas
e no entanto em cada uma delas mantenho a tua imagem

terça-feira, 24 de abril de 2012

Leve, levemente, como quem chama por mim
com uma voz que é feita só de silêncios,
chegaste e partiste e deixaste-me o desassossego.
Não sei medir o tempo da ausência
e tornam-se pesadas as horas em que só tenho a tua imagem.
Não tenho saudades do passado,
tenho só saudades de ti
e a voz que tive uniu-se ao teu silêncio
porque, de tão densas, as memórias vão desaparecendo
deixando-me ainda mais sozinho nos dias vazios.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Quando escrevo o teu nome na areia do tempo
sinto que na minha carne cresce o desespero
e a memória é uma clepsidra rodeada de algas.
Atrasei os relógios e alterei os calendários
mas o teu nome permanece um sinal de desassossego,
o teu nome é um código secreto que se tornou inútil,
a chave que já não abre a porta dos mistérios.
Quando escrevo o teu nome na areia do tempo
fico à espera que as ondas o apaguem lentamente
e sei que continuarei a escrevê-lo
porque o pior de tudo seria o esquecimento.
O gato preto continua sentado no quintal vazio,
espaço onde certamente irão construir um prédio.
Quando isso acontecer, o gato terá que procurar outro lugar
para fazer as suas excursões soalheiras
e eu deixarei de o poder ver da minha janela
enquanto acerto o meu relógio pelas horas oficiais
e me preparo para mais um dia de trabalho.
Mas, por agora, o gato continua dono do seu espaço,
ironicamente alheio ao acertar do meu relógio
e às responsabilidades de quem precisa de trabalhar para viver.
Fecho a janela com raiva e nostalgia;
raiva por não poder ter a liberdade do gato
e nostalgia antecipada de quando o não poder ver.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Desenho um rosto,
eu que nunca tive jeito para desenhar
e que não guardo nenhuma das pinturas da infância,
eu que ainda hoje tenho dificuldade em combinar as cores
ou escrever um texto que seja compreensível.
Mesmo assim desenho,
concentrado sobre o papel que já foi branco,
desenho de memória o que já não posso ver.
Não estou obcecado por qualquer finalidade estética;
desenho apenas um rosto
e esse rosto é a janela de um mundo que perdi.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Julguei com as palavras construir mundos
para substituir os mundos de que não gostava
mas acabei por ser apenas colecionador de inutilidades.
As palavras amontoaram-se nas margens dos dias
e eu naufraguei nelas, perdi-me e encontrei-me,
fiz delas barcos, ilhas, pátios de descansar da vida,
arquitetei sonhos e destruí muralhas de impedir horizontes.
As palavras foram as minhas caixas de guardar segredos
mas agora, quando os quero recuperar,
descubro que as memórias já não são as mesmas
e que o tempo inexoravelmente torna as palavras nos espelhos de si mesmas.
Um dia irei descobrir o que há nos nevoeiros
mas enquanto esse tempo não chegar
não serei cavaleiro de coisa nenhuma.
Tive a minha dose de sonhos e de ilusões
mas agora sei que todos os paraísos são perigosos
porque há sempre prisões e infernos
por detrás das verdades que se querem únicas.
Um dia talvez volte a acreditar num mundo novo
mas no momento tento não envelhecer demasiado
ou ficar encarcerado em qualquer memória sepultada.
Não estou preparado para converter a esperança numa bandeira
e partir numa viagem que acaba sempre em naufrágio.
Um dia encontrarei as respostas
mesmo para aqueles problemas que nunca tive
mas por agora bastam-me as perguntas
e continuarei insatisfeito à procura de mim.