terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sobreviver

Sobram os dias vazios,
os dias recheados de inutilidades importantes,
os dias manchas a alastrar na parede
construindo um enorme mural de desespero.
Sobreviver não é tarefa de herói
e o corpo grita a ausência de outro corpo,
o corpo é pedra e faca, espuma depois da onda,
espinho que complementa a carne, ignóbil dor
como o são todas dores do sacrifício.
Sobram as palavras e os silêncios,
o lento mastigar das impossibilidades,
as imagens sombreadas de crepusculos.
Sobreviver não é assunto de poema épico
e tudo em mim recusa a crueldade do tempo,
esse relógio que tritura as engrenagens,
esse espelho da morte e das suas armadilhas.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Jogral num espectáculo que nunca termina,
Órfão de mim mesmo sem saber a origem,
Sentinela às portas de um deserto transparente,
Emparedado do lado de fora de um castelo de ilusão,

Tornei-me imagem num espelho convexo,
Odiei tudo quanto não era eu,
Recusei os horizontes amplos no exterior de mim,
Resmunguei desculpas para me esquecer no tempo,
Enfrentei os monstros que a minha imaginação criava,
Sozinho sem no entanto poder aniquilar o mundo.
Vive-se de muitas maneiras
E algumas são tão indescritíveis que se assemelham à morte.
Vive-se a contar com os paraísos do futuro
E esses paraísos servem-nos para desculpar o que perdemos.
Vive-se nas palavras de um livro
E essas palavras são barreiras,
Juízes do que dizemos e fazemos,
Carrascos dos nossos próprios sentimentos.
Vive-se nas memórias do passado,
Transformando cada dia numa repetição,
A história emoldurada em que ninguém repara.
Vive-se como se se estivesse dentro de uma ampulheta,
Calculando os minutos e escrevendo os relatórios,
Minuciosas minutas de desperdício e náusea.
Vive-se com medo e amortalhado no medo,
Receoso dos outros e do que eles possam pensar de nós,
Receoso das palavras que encerram armadilhas.
Vive-se na inconsciência forçada do momento,
Perdido num nevoeiro de emoções exacerbadas,
Exausto no centro de um delírio permanente.
Vive-se de muitas maneiras
E esgota-se a vida na urgência da perfeição,
No cumprimento das regras e preceitos.
Julga-se que se vive nas sombras dos fantasmas,
Fantasmas também nós num mundo de enganos
E as palavras são as nossas estratégias de sobrevivência,
A última esperança de quem não aceita a morte.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Acusam-me de Narciso por estar prisioneiro de mim
e me ter constantemente na consciência,
acusam-me de obsessivo e inseguro,
afirmam que desisti da viagem
quando só estou suspenso entre o momento e o futuro,
seja ele qual for, sem traços do destino.
Subsisto dos fragmentos da memória,
resisto à maldição das estátuas de sal,
com as palavras combato a aridez do papel
mergulhando nos mistérios da água primordial.
Narciso não sou nem outra qualquer figura mitológica,
não pretendo imitar a vida de ninguém
e se continuo na prisão dos meus limites
não é porque tenha desistido já da liberdade.
As palavras são afinal insuficientes
para desenhar os contornos do silêncio
e explicar as circunstâncias de uma vida.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Os heróis antigos transformaram-se em estátuas
e persistem nas histórias que já ninguém recorda
porque agora os heróis são mais instantâneos
e a fama dura apenas o tempo das imagens.
As naus apodreceram e os portos estão abandonados
quem ainda sonha com os impérios
são aqueles que estão viciados nos nevoeiros
e trocam tudo por um passado embalsamado
mesmo que povoado de cadáveres.
Os oceanos estão todos catalogados,
substituíram-nos por imagens em 3 D
que mumificam as sensações que possamos ter delas
e nos transmutam a nós mesmos em meros espectadores,
estátuas imóveis só com os olhos em movimento.
Se solicitarem um poeta épico para cantar as glórias passadas
escolham um cego como o velho Homero
ou então um louco como o habitual D. Sebastião,
mistura de D. Quixote com Sancho Pança,
ridículo cavaleiro que povoa os nevoeiros
ainda e sempre à procura da Dulcineia
ignorando que entretanto as princesas se tornaram mulheres.
Se precisarem de epopeias e narrativas heróicas
coloquem todas as estátuas numa praça,
recuperem os templos antigos e renovem os altares,
convertam a morte em elogio póstumo
e atrasem os relógios ou pelo menos encravem os mecanismos
com a areia que trazem no lugar do corpo.
Os mundos de hoje são menos aquáticos,
as distâncias apequenam-se num ecrã que já foi mágico,
com heróis e de loucos distorce-se a memória
e só nos resta recuperar o silêncio que ainda existe nas palavras.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Acaba em silêncio o que começou na água,
onda, concha, peixe das profundidades,
estrela do mar, coral e gruta submarina.
As palavras naufragadas pesam-me nos bolsos,
transporto-as como uma relíquia desconhecida,
viajo entre a noite e o dia
com o corpo das sereias no exterior do espelho.
Entretanto converti o tempo num velho astrolábio
que me indica a localização dos astros
mas me faz chegar irremediavelmente atrasado.
As horas que há são aquelas que desperdicei
e nunca aprendi matemática suficiente para contabilizar os minutos
e impedir que tudo seja exterior a mim.
A água apaga as margens da memória,
dissolve-me o corpo num redemoínho de algas
e mesmo quando recupero do pesadelo original e único
há pedaços de algas a decomporem-se nos meus olhos
impedindo-me de ver para além dos horizontes de água.
O silêncio não substituiu a água,
transformou-a em mosteiro ao redor de mim,
emparedou as janelas e trocou o lugar das portas
obrigando-me a não saber se estou dentro ou fora
nesta casa fronteira entre o oceano e eu próprio.
Água e silêncio é tudo o que resta do meu corpo
e se acreditam que mesmo assim eu existo
é porque se deixam enganar pelos espelhos,
perigosos instrumentos de aquarizar os dias.
Os piores labirintos são os das palavras
porque neles está e escondido o nosso próprio monstro,
aquele que nos conhece desde o nascimento,
aquele que nos pode aniquilar os sonhos
mantendo-nos vivos num corpo de cadáver.
Os piores labirintos são os dos silêncios,
labirintos de ausências,
vestígios das esfinges a guardar os desertos.
A memória recusa-se a voltar a Creta e aos seus fantasmas
porque os heróis antigos perderam-se no esquecimento
quando Ariadne deixou de tecer os seus novelos.
A memória é herdeira de outras viagens de Ulisses
mas os monstros e as sereias foram vencidos pelo tempo
e os únicos vestígios são as palavras que escrevo
juntamente com os silêncios que vestem o meu corpo,
tudo labirintos que a minha memória esquece
na sua tarefa de desistir da imortalidade.