sábado, 1 de maio de 2010

As coisas que se escrevem
nunca são verdadeiramente aquilo que era para ser escrito
porque há um abismo entre as palavras e as intenções,
um nevoeiro que transfigura as perspectivas,
um biombo entre nós e os nossos reflexos.
As coisas que se escrevem são apenas resíduos,
restos que sobraram das vidas por viver,
fragmentos dos gestos e sentimentos,
esfinges que marcam a fronteira entre o corpo e o deserto.
Eu escrevo aquilo que sei e que não sei,
aquilo que sinto e o que finjo que sinto
ou até mesmo o que deveria sentir.
Eu escrevo porque sim e porque não,
porque existo e porque me canso de existir,
com todas as razões que depois invento
e com a ausência de razões, a inevitabilidade.
Escrevo, escrevo-me, desabito-me
e as palavras são refúgio e máscara,
rios que de súbito secam no papel
e substituem as sereias e os seus fantasmas.
As coisas que escrevo são inúteis na sua verdade
e porque mentem de mim a imagem que não sou
são espelhos onde me perdendo me encontro.
As coisas que escrevo continuam minhas
e no entanto emigram para outras paisagens
na repetição de uma viagem que nunca fiz.
As coisas que escrevo estão escritas,
esqueço-as no fundo das gavetas da memória
ou são longínquas presenças que ainda não imagino
mas que sem existir são já parte da minha existência.
Escrevo como missionário sem missão,
centrado em mim e no entanto livre,
tanto quanto um homem pode ser,
livre de me reinventar com as palavras
num esforço permanente de alcançar a felicidade.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Porque não se pode amar eternamente
a não ser nos poemas dos poetas,
porque o tempo que temos é sempre insuficiente
e mesmo assim esquecemo-nos de dizer as palavras importantes,
porque as memórias são constantemente reconstruídas
como se a vida precisasse de razões e argumentos,
porque temos a urgência absurda de atingir o futuro,
os dias adquirem os reflexos do espelho
mas neles somos incapazes de nos ver em corpo inteiro.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Neste país onde a terra acaba e o mar começa
não sou monge senão de mim
sem eremitério, virgem predestinada ou livro de orações.
Tenho enjoos de água, pesa-me já o corpo
depois de ver todas as naus que partiram
e ainda não sei se existem novos horizontes
para além da distância que as crianças imaginam
enquanto brincam com as estrelas na praia.
Também eu já fui criança na minha praia imaginada,
também eu escrevi nas margens da areia
e doeram-me as palavras que se desvaneceram
como se elas fossem pessoas reais e conhecidas.
Passou o tempo das naus e das crianças na praia
e hoje só restam os vestígios das gaivotas,
essas metamorfoses das naus e das crianças,
as gaivotas que vêm pousar no meu telhado
e falam comigo numa linguagem que não entendo
porque entretanto cresci e perdi a magia da infância.
Sou órfão deste país da minha memória
mas começa a chover e fecho a janela
sem saber se lá longe o mar ainda persiste.
Somos todos narcisos ainda que envergonhados,
endeusamo-nos mesmo que numa cruz de remorsos,
procuramo-nos nos espelhos embaciados
e as palavras que usamos estão manchadas de intimidade.
Quem não gosta de si está como a bela adormecida
à espera de alguém que lhe desperte a auto-estima,
quem não gosta de si está nu num castelo fechado
e sabe e sente que as paredes não lhe evitam o sofrimento
de ser e de se querer apenas a medo,
quem não gosta de si está já morto em si mesmo,
enterrado num cemitério feito de mágoas e penas.
Somos todos narcisos enfeitiçados pelos nossos reflexos
e prontos a partir em busca de novos horizontes,
espaços para além das nossas fronteiras claustrofóbicas.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Os anos passam,
possivelmente tenho rugas nos sentimentos
e os próprios pensamentos estão mais lentos
tal como a memória que se vai inexactidando.
Os calendários vão mudando na parede
e as imagens neles são sempre nostálgicas
porque recordam os dias que não podemos recuperar.
O poeta da pátria com direito a panteão nacional
dizia que se mudam os tempos e se mudam também as vontades.
Outros, porém, preferem falar apenas do futuro
prometendo paraísos ou a felicidade serena
dos que perderam o direito à rebeldia.
Os anos passam insensíveis,
indiferentes aos diferentes rumos das minhas disposições
e quando me olho ao espelho, de relance,
ainda não sei se sou quem me observo
ou se é a própria vida que se espanta
com o que fiz em nome dela.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Entre os dias e os seus despojos resto eu,
frágil, inseguro, interrompido na viagem.
Esqueço e recordo ininterruptamente
num alucinado carrossel de sentimentos
mas as imagens vão-se desvanecendo na memória
até se transformarem em fantasmagóricas impressões de sombras.
Destino-me por vontade e omissão.

Entre o que escrevo e os silêncios magoados resto eu,
incompleto, dividido, separado de mim.
Uso as palavras para recordar que vivo
mas elas devolvem-me uma realidade deformada.
Destino-me ainda e sempre por teimosia.

Entre a razão e a inconsciência resto eu,
insubmisso, rebelde, desafiador dos deuses.
Faço dos silêncios a minha residência dos segredos
e mesmo assim não estou enclausurado em mim.
Destino-me porque não o fazer seria desistir,
acreditar que a felicidade pode ser dócil
como a promessa de uma obediência abençoada.

domingo, 14 de março de 2010

50 anos

Não é ainda o momento de fazer o balanço.
Os balanços fazem-se quando termina um ciclo
e mesmo nessas altura o que interessa é o que há-de vir.
A vida não se quer em fascículos
embora seja mais cómodo avaliar o que fizemos,
preencher as colunas do deve e haver,
petrificarmo-nos num tempo que inevitavelmente já passou.
Não quero fazer balanços ainda que provisórios,
não quero regressar aos meus diários de mágoas
até porque se o fizesse não me reconheceria neles.
Viver já é difícil tarefa
para que percamos tempo a registá-la pormenorizadamente
com o vício do bibliotecário e o desespero dos que ainda não viveram.