terça-feira, 19 de abril de 2011

Não quero esquecer-me de quem sou;
não é para isso que escrevo
e sou carcereiro e prisioneiro das palavras,
Sei que a memória não é um espelho transparente
ou uma linha recta e nítida num horizonte branco.
Sei muitas coisas e a maior parte delas são inúteis
porque ninguém nos ensina o que é verdadeiramente importante.
Não quero ser poeta das minhas desgraças;
não é por isso que escrevo
aqui neste papel que é a minha residência temporária.
Sei que há tragédias maiores do que uma vida
porque as vejo quotidianamente nos noticiários.
Sei que os espelhos de Narciso nos atraem
transformando-nos em esfinges das nossas próprias sombras.
Escreverei enquanto as palavras tiverem densidade
e não tiver necessidade de as usar como biombos
para me esconder da minha verdade,
As palavras, de tanto usadas, acabam por ficar empedernidas,
lúgubres ameaças de um silêncio primordial.
Creio que me cansei de descer às cavernas de Polifemo,
creio que o cansaço transformou as palavras em nevoeiro
e entretanto perdi as bússolas e os mapas,
perdi o barco e a própria sensação da viagem.
As palavras adquiriram a cor da terra
e deixam-me na boca um sabor a cinzas e a ausência.
Porém, ainda não estou viúvo das palavras,
já me basta a realidade e as horas mortas,
Continuarei a tentar transpô-las para o papel
num ritual que de sagrado só tem a heresia.
Mesmo quando os dias são normais e as horas mornas,
mesmo quando nos calendários as datas se repetem
eu sobrevivo nas margens do abismo
e nunca aceitarei as realidades mortas.
Com as palavras viajo no impossível
e os meus mundos são construídos de imagens e memórias.
Mesmo quando nada parece atormentar-nos
o tempo transforma-se em labirintos intermináveis
e neles há algo da nossa identidade que anoitece
como se nos obrigassem a permanecer no quarto escuro.
Com as palavras multiplico as imagens,
estilhaço os espelhos, sou incêndio e cinzas,
deito abaixo as paredes do quarto escuro
e descubro que tenho qualquer coisa de esfinge
porque ainda ando à procura da minha origem.