segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Rituais

Há pequenos rituais nos espaços públicos,
gente que se conhece desconhecendo-se através das palavras,
repetindo os gestos até ao seu absurdo,
repetindo os reflexos de uma normalidade habitual.
Eu sou o estrangeiro a tudo o que se passa,
venho de longe onde não há sinais codificados
e onde as palavras não estão ainda domesticadas.
Eu sou aqui o intruso, o inexplicável,
aquele que não encaixa nos esquemas,
o enigma que perturba a tranquilidade e a estilhaça.
Só eu não pertenço à realidade habitual
porque não faço parte dos rituais constituídos
e uso as palavra como facas para cortar os dias
em lugar de adormecer no seu regaço.
Quando sair daqui será um alívio,
tudo poderá regressar ao aquário transparente
e eu levarei comigo a minha inquietação
povoada de palavras que ainda não foram usadas.
No silêncio saturado de barulho de um café anónimo
acredito ainda que as palavras são velhas feiticeiras
capazes de transmutar os dias e as suas sombras
e levarem-nos a viajar para além dos desertos,
para além dos territórios guardados pelas esfinges.
Há algumas palavras misteriosas
que gostam de se esconder por detrás dos nevoeiros
mas as mais perigosas são as inquietas,
aquelas que estão carregadas de violência e de silêncios,
as palavras que inundam as nossas sensações
e transformam tudo num aquário imprevisível.
No entanto, prefiro as palavras inesperadas,
as que me aparecem sem serem convidadas,
inoportunas, por vezes cruéis, mas inadiáveis,
as palavras que são o nosso corpo e o sangue,
as únicas que dizem de nós a realidade.
A realidade não é sonho nem fantasia
apesar do que dela dizem os poetas românticos,
a realidade não é montra de loja,
alfarrabista, armazém de produtos por catalogar,
a realidade não é teatro prestes a fechar,
espectáculo para um público que ainda não nasceu.
Quem pode aguentar a realidade inteira
sem espelhos, biombos ou desculpas de papel,
quem não a quis trocar por uma imagem tranquila,
uma paisagem com céu seguro e mar inofensivo?
A realidade é sombra e luz e nevoeiro
e do outro lado do painel com luzes e imagens
está o silêncio povoado com o indizível.
Quem sabe de que cor é feita a realidade?

sábado, 18 de dezembro de 2010

De novo só perante mim mesmo
sem desculpas, em ilusões, sem rodeios,
na crueza própria da realidade,
fitando nos olhos os reflexos no espelho das palavras,
penetrando no abismo das regiões proibidas,
acordando os velhos fantasmas adormecidos.
Quem procuro nos resíduos do eu estilhaçado,
que verdades estou disposto a aceitar de mim?
Uso as palavras para fazer uma anatomia do sentimentos
mas perco-me inevitavelmente no labirinto das emoções reflectidas.
Depois, só me resta forçar as memórias
até construir de mim uma imagem de sombras.
De novo só perante mim mesmo
sem remorsos, sem contas por ajustar,
humano, sem pesadelos de divindades
e sem paraísos de encomenda ou infernos privados,
criança diante dos mistérios do tempo.
Não sei e me procuro ou se fujo das origens
mas as palavras acompanhá-las-ei sempre
porque sem elas perderia a minha liberdade.
Tenho que repovoar os meus quartos interiores,
substituir os múltiplos silêncios
por um silêncio vivo, vestido de palavras, solidário,
tenho que deixar de olhar o espelho
ou os abismos que nele me obcecam.
Não quero habitar num deserto de sereias
a lamentar o tempo em que ainda havia água
e árvores e céus limpos de areia e horizontes.
Não quero regressar às cavernas do Minotauro
e ficar à espera do destino e do resgate.
Desistir é aceitar a morte por antecipação
e não posso permitir-me a fraqueza da inexistência.
A saudade não pode ser pretexto para abandonar a viagem
e temos sempre que acreditar que há novas ilhas
para além do horizonte permitido.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Desconheço os sinais cabalísticos e os mistérios,
ignoro os rituais do medo e os seus sacerdotes,
não tenho tempo para os altares sombrios
onde se adora a própria impossibilidade do infinito,
não tenho paciência para os labirintos vazios
onde querem aprisionar a crença ou a sua ausência.
Não acredito em poderes que tornam o homem mais insignificante,
não acredito nas brumas onde nascem os heróis
que nos querem resgatar ao preço da liberdade,
não endeuso sequer a razão e os seus fantasmas.
Continuarei a interrogar as coisas e a mim próprio,
inquieto, sem verdades absolutas, sem dogmas,
recusando os mitos e quem quer fazer deles a única verdade.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Seremos heróis dos nossos sonhos,
cansados, ruidosos, absurdamente solitários
e nos espelhos haverá sempre os reflexos dos minotauros,
as imagens distorcidas das sereias
aprisionadas numa tempestade de areia.
Seremos viajantes com os mapas ainda por desenhar
e todos os horizontes impedem o momento da morte,
inevitável regresso à ilha de onde nunca chegamos a sair.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Julguei que a felicidade fosse uma coisa permanente,
uma dádiva dos deuses, uma caixa de Pandora
que premiasse a nossa necessária submissão,
julguei que os momentos podiam ser eternos
sem precisarmos da memória para os trazer de volta.
Fui ingénuo como uma criança que não quer crescer
mas acredito ainda que não nos está destinado o sofrimento
e que o sacrifício de Sísifo continua a valer a pena
porque é a revolta e a liberdade que nos torna homens.
Vertigem e silêncio, despótica palavra aprisionada,
fragmentos de uma memória que ficou interrompida,
nítida penumbra a anunciar o vazio
quando sabemos que o infinito vazio habita os nossos medos
e tem corpo de espelho e de sereia.
É o tempo que nos falta
ou são os relógios que estão sempre atrasados,
os relógios que guardamos nos interstícios do próprio tempo?
Vertigem e silêncio, a inquietação serena
que nos transforma em estátuas inseguras,
imagens caleidoscópicas de outros possíveis passados.
É de sonhos que estamos carregados
ou será que o peso é apenas o da ausência
e não sabemos esperar senão a inevitável morte?

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Os homens

Os homens são tímidos nas questões do amor
e intrépidos na guerra e na violência.
Os homens são homens a brincar de deuses
enquanto os deuses desejariam ser apenas humanos.
Os homens são enigmas e labirintos,
teoremas que só as crianças entendem
porque não têm a ambição de entender tudo.
Os homens são silêncios carregados de palavras
e a sua temporalidade é um rio que desagua em esperança.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O amor

O amor não é suficiente
porque o amor não impede o sofrimento
nem nos torna mais invulneráveis.
O amor não é um antídoto contra a doença
nem o remédio para atrasar a morte.
O amor é ridículo com cartas ou sem elas
e é cruel nas despedidas,
tortura-nos com pequenas coisas,
incomoda-nos, tira-nos o sono.
O amor está fora de moda,
transformou-se num postal colorido
com pôr do sol e frases de ocasião.
O amor é incêndio e cinzas,
dilúvio de emoções e árido deserto.
O amor pode até ser fútil e banal
mas que ninguém pense que pode viver sem ele
porque sem amor somos marionetas tristes,
sombras de um desejo que nunca foi permitido.

sábado, 13 de novembro de 2010

Para onde vão os dias que passaram?
Haverá algum baú secreto onde se acumulam as pequenas sensações,
as palavras ridículas que nunca te disse
mas que foram as nossas senhas silenciosas?
Sou como uma criança à beira do desconhecido,
tenho medo de olhar
e as lágrimas escondo-as dos olhares dos outros
para que eles não se apercebam da minha fragilidade.
Sou como uma criança que perdeu o brinquedo
e não quer substituí-lo por um objecto qualquer.
Para onde vão os dias que passaram,
que rio levará com ele as memórias do que não foi possível?

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Fazes-me falta,
a cama é grande,
a casa está vazia de ti,
há palavras sufocadas na garganta,
palavras vestidas de negro
que nunca gostaria de habitar.
Fazes-me falta,
os dias repetem-se nos calendários
mas evito fazer deles efemérides,
os dias são apenas dias de ausência,
dias sem ti,
impossíveis memórias
porque o tempo não regressa.
Fazes-me falta,
os anos vão passar inevitavelmente
insensivelmente,
mas sem ti,
à tua revelia.
Fazes-me falta,
de todos os silêncios o teu é o mais definitivo,
o mais magoado
e rasga as paredes da minha tranquilidade aparente.
Fazes-me falta,
de todas as vozes só não ouço a tua
e os sons estão congelados no tempo
como imagens num álbum interdito.
Fazes-me falta
mas não há falsas promessas de reencontro
e a solidão é tudo o que me deixaste.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Traição

Traí o silêncio com todos os sons do desespero,
traí o princípio da insensibilidade,
traí-te quando te quis perfeita,
emoldurada num tempo dourado e falso.
Não sei se voltarei a recuperar a serenidade,
abandonei todos os projectos de invulnerabilidade
e não te quero imagem em relicário permanente.
Mesmo assim não há pior traição do que a morte.
Esqueço-me dos sinais, das palavras, das paisagens comuns,
esqueço-me dos dias irrelevantes e dos gestos insignificantes
que abriam novas perspectivas no nosso mundo a dois,
esqueço-me do som dos teus sorrisos,
da cor do teu cabelo nas tuas mãos
e das minhas mãos no teu corpo,
esqueço,
esqueço-me,
esqueço-me de mim.

sábado, 16 de outubro de 2010

Eu

Esgotei os dicionários para saber das palavras impronunciáveis,
esgotei-me na missão de explorar os silêncios,
perdi-me nos labirintos dos espelhos,
julguei que me encontrava no que diziam de mim
mas eram apenas ecos ou reflexos das minhas cavernas,
sei-me intermitentemente e em excesso,
persisto teimosamente na tarefa de não desistir
e recuso-me a contabilizar as perdas e os ganhos
porque a vida é mais do que uma questão de contabilidade.
Fui quem sou em muitas ocasiões diferentes,
fui muitos e no entanto permaneci o mesmo,
fui sem esgotar o ser, sempre em projecto,
sempre insatisfeito em busca de cumprir o sonho
ou os múltiplos sonhos que vou arquitectando.
Eu.
Podem as palavras expressar convenientemente a existência humana?

domingo, 10 de outubro de 2010

Precisamos todos de uma razão para viver
Porque a vida é um enigma que a si mesmo não se explica,
Uma equação da matemática dos sentimentos.
E no entanto há quem forneça regras,
Imponha caminhos e determine condições
E no entanto há pastores de rebanhos e rebanhos dóceis.

Precisamos todos de alcançar a felicidade
Mesmo que seja com diferentes mapas.
E no entanto há quem a venda engarrafada,
Há quem provoque holocaustos como única maneira de ser feliz
E no entanto há sempre aqueles
Para quem a sua felicidade implica a destruição dos outros.

Precisamos todos de ser mais humanos
Menos repletos de certezas, mais abertos.
E no entanto há quem detenha todas as verdades,
Quem seja o centro do mundo e arredores,
Um robô programado que aceita um único programa.

E ainda há quem proclame a superioridade do homem,
Esse bicho aflito que nem com a história aprende
Que a única lição de vida é viver plenamente
Sem nos anularmos nem ignorar os outros!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sobreviver

Sobram os dias vazios,
os dias recheados de inutilidades importantes,
os dias manchas a alastrar na parede
construindo um enorme mural de desespero.
Sobreviver não é tarefa de herói
e o corpo grita a ausência de outro corpo,
o corpo é pedra e faca, espuma depois da onda,
espinho que complementa a carne, ignóbil dor
como o são todas dores do sacrifício.
Sobram as palavras e os silêncios,
o lento mastigar das impossibilidades,
as imagens sombreadas de crepusculos.
Sobreviver não é assunto de poema épico
e tudo em mim recusa a crueldade do tempo,
esse relógio que tritura as engrenagens,
esse espelho da morte e das suas armadilhas.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Jogral num espectáculo que nunca termina,
Órfão de mim mesmo sem saber a origem,
Sentinela às portas de um deserto transparente,
Emparedado do lado de fora de um castelo de ilusão,

Tornei-me imagem num espelho convexo,
Odiei tudo quanto não era eu,
Recusei os horizontes amplos no exterior de mim,
Resmunguei desculpas para me esquecer no tempo,
Enfrentei os monstros que a minha imaginação criava,
Sozinho sem no entanto poder aniquilar o mundo.
Vive-se de muitas maneiras
E algumas são tão indescritíveis que se assemelham à morte.
Vive-se a contar com os paraísos do futuro
E esses paraísos servem-nos para desculpar o que perdemos.
Vive-se nas palavras de um livro
E essas palavras são barreiras,
Juízes do que dizemos e fazemos,
Carrascos dos nossos próprios sentimentos.
Vive-se nas memórias do passado,
Transformando cada dia numa repetição,
A história emoldurada em que ninguém repara.
Vive-se como se se estivesse dentro de uma ampulheta,
Calculando os minutos e escrevendo os relatórios,
Minuciosas minutas de desperdício e náusea.
Vive-se com medo e amortalhado no medo,
Receoso dos outros e do que eles possam pensar de nós,
Receoso das palavras que encerram armadilhas.
Vive-se na inconsciência forçada do momento,
Perdido num nevoeiro de emoções exacerbadas,
Exausto no centro de um delírio permanente.
Vive-se de muitas maneiras
E esgota-se a vida na urgência da perfeição,
No cumprimento das regras e preceitos.
Julga-se que se vive nas sombras dos fantasmas,
Fantasmas também nós num mundo de enganos
E as palavras são as nossas estratégias de sobrevivência,
A última esperança de quem não aceita a morte.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Acusam-me de Narciso por estar prisioneiro de mim
e me ter constantemente na consciência,
acusam-me de obsessivo e inseguro,
afirmam que desisti da viagem
quando só estou suspenso entre o momento e o futuro,
seja ele qual for, sem traços do destino.
Subsisto dos fragmentos da memória,
resisto à maldição das estátuas de sal,
com as palavras combato a aridez do papel
mergulhando nos mistérios da água primordial.
Narciso não sou nem outra qualquer figura mitológica,
não pretendo imitar a vida de ninguém
e se continuo na prisão dos meus limites
não é porque tenha desistido já da liberdade.
As palavras são afinal insuficientes
para desenhar os contornos do silêncio
e explicar as circunstâncias de uma vida.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Os heróis antigos transformaram-se em estátuas
e persistem nas histórias que já ninguém recorda
porque agora os heróis são mais instantâneos
e a fama dura apenas o tempo das imagens.
As naus apodreceram e os portos estão abandonados
quem ainda sonha com os impérios
são aqueles que estão viciados nos nevoeiros
e trocam tudo por um passado embalsamado
mesmo que povoado de cadáveres.
Os oceanos estão todos catalogados,
substituíram-nos por imagens em 3 D
que mumificam as sensações que possamos ter delas
e nos transmutam a nós mesmos em meros espectadores,
estátuas imóveis só com os olhos em movimento.
Se solicitarem um poeta épico para cantar as glórias passadas
escolham um cego como o velho Homero
ou então um louco como o habitual D. Sebastião,
mistura de D. Quixote com Sancho Pança,
ridículo cavaleiro que povoa os nevoeiros
ainda e sempre à procura da Dulcineia
ignorando que entretanto as princesas se tornaram mulheres.
Se precisarem de epopeias e narrativas heróicas
coloquem todas as estátuas numa praça,
recuperem os templos antigos e renovem os altares,
convertam a morte em elogio póstumo
e atrasem os relógios ou pelo menos encravem os mecanismos
com a areia que trazem no lugar do corpo.
Os mundos de hoje são menos aquáticos,
as distâncias apequenam-se num ecrã que já foi mágico,
com heróis e de loucos distorce-se a memória
e só nos resta recuperar o silêncio que ainda existe nas palavras.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Acaba em silêncio o que começou na água,
onda, concha, peixe das profundidades,
estrela do mar, coral e gruta submarina.
As palavras naufragadas pesam-me nos bolsos,
transporto-as como uma relíquia desconhecida,
viajo entre a noite e o dia
com o corpo das sereias no exterior do espelho.
Entretanto converti o tempo num velho astrolábio
que me indica a localização dos astros
mas me faz chegar irremediavelmente atrasado.
As horas que há são aquelas que desperdicei
e nunca aprendi matemática suficiente para contabilizar os minutos
e impedir que tudo seja exterior a mim.
A água apaga as margens da memória,
dissolve-me o corpo num redemoínho de algas
e mesmo quando recupero do pesadelo original e único
há pedaços de algas a decomporem-se nos meus olhos
impedindo-me de ver para além dos horizontes de água.
O silêncio não substituiu a água,
transformou-a em mosteiro ao redor de mim,
emparedou as janelas e trocou o lugar das portas
obrigando-me a não saber se estou dentro ou fora
nesta casa fronteira entre o oceano e eu próprio.
Água e silêncio é tudo o que resta do meu corpo
e se acreditam que mesmo assim eu existo
é porque se deixam enganar pelos espelhos,
perigosos instrumentos de aquarizar os dias.
Os piores labirintos são os das palavras
porque neles está e escondido o nosso próprio monstro,
aquele que nos conhece desde o nascimento,
aquele que nos pode aniquilar os sonhos
mantendo-nos vivos num corpo de cadáver.
Os piores labirintos são os dos silêncios,
labirintos de ausências,
vestígios das esfinges a guardar os desertos.
A memória recusa-se a voltar a Creta e aos seus fantasmas
porque os heróis antigos perderam-se no esquecimento
quando Ariadne deixou de tecer os seus novelos.
A memória é herdeira de outras viagens de Ulisses
mas os monstros e as sereias foram vencidos pelo tempo
e os únicos vestígios são as palavras que escrevo
juntamente com os silêncios que vestem o meu corpo,
tudo labirintos que a minha memória esquece
na sua tarefa de desistir da imortalidade.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Nem todos os silêncios têm a mesma intensidade.
Sei-o porque eu e eles somos velhos companheiros,
tão velhos quanto a minha idade mo permite
ou a indulgência de quem viu nascer o mundo.
Os silêncios são os vários rostos de uma mesma realidade.
Nos espelhos de mim
cheguei a confundir os seus reflexos com a minha imagem,
nos espelhos de mim vesti o meu corpo de silêncio
e usei os sentimentos como facas afiadas
separando a superfície do que não há por baixo,
expondo as múltiplas cascas do meu ser.
Diz-me o silêncio que mentem os que o querem fúnebre
mas eu sei que até as mentiras têm alguma verdade,
sei-o porque há silêncios becos-sem-saída,
silêncios com a consistência dos nossos maiores pesadelos.
Diz-me o silêncio que está cansado de usarem o seu nome
mas o pior cansaço está no perder dos horizontes
e ficar subitamente sem barco, sem mar e sem viagem.
Os silêncios são os vários rostos de mim mesmo,
os silêncios são feitos com todas as palavras omitidas
e por isso posso trazê-los a este poema,
sentar-me com eles como se estivesse numa mesa de café
e esquecer-me de mim para fingir que vivo.
Fascinam os cães que desenterram os cadáveres
e mesmo depois de terem assassinado todas as crianças
numa repetição macabra do massacre de Herodes
e terem destruído a esperança dos que sobreviveram
continuo o espectador sereno e silencioso
sentado no café sem mesas nem cadeiras,
continuo a escrever nos cadernos vermelhos
mesmo que já não haja ninguém para os ler.

Não sou insensível aos mortos nem à morte,
não julgo que, por ser poeta, sou imortal
e escaparei às balas e ao ódio dos homens,
não transformei a minha vida num volume de poesias
mas confesso que me fascinam os cães famintos
e fico a olhá-los como se tudo se resumisse a eles.

sábado, 1 de maio de 2010

As coisas que se escrevem
nunca são verdadeiramente aquilo que era para ser escrito
porque há um abismo entre as palavras e as intenções,
um nevoeiro que transfigura as perspectivas,
um biombo entre nós e os nossos reflexos.
As coisas que se escrevem são apenas resíduos,
restos que sobraram das vidas por viver,
fragmentos dos gestos e sentimentos,
esfinges que marcam a fronteira entre o corpo e o deserto.
Eu escrevo aquilo que sei e que não sei,
aquilo que sinto e o que finjo que sinto
ou até mesmo o que deveria sentir.
Eu escrevo porque sim e porque não,
porque existo e porque me canso de existir,
com todas as razões que depois invento
e com a ausência de razões, a inevitabilidade.
Escrevo, escrevo-me, desabito-me
e as palavras são refúgio e máscara,
rios que de súbito secam no papel
e substituem as sereias e os seus fantasmas.
As coisas que escrevo são inúteis na sua verdade
e porque mentem de mim a imagem que não sou
são espelhos onde me perdendo me encontro.
As coisas que escrevo continuam minhas
e no entanto emigram para outras paisagens
na repetição de uma viagem que nunca fiz.
As coisas que escrevo estão escritas,
esqueço-as no fundo das gavetas da memória
ou são longínquas presenças que ainda não imagino
mas que sem existir são já parte da minha existência.
Escrevo como missionário sem missão,
centrado em mim e no entanto livre,
tanto quanto um homem pode ser,
livre de me reinventar com as palavras
num esforço permanente de alcançar a felicidade.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Porque não se pode amar eternamente
a não ser nos poemas dos poetas,
porque o tempo que temos é sempre insuficiente
e mesmo assim esquecemo-nos de dizer as palavras importantes,
porque as memórias são constantemente reconstruídas
como se a vida precisasse de razões e argumentos,
porque temos a urgência absurda de atingir o futuro,
os dias adquirem os reflexos do espelho
mas neles somos incapazes de nos ver em corpo inteiro.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Neste país onde a terra acaba e o mar começa
não sou monge senão de mim
sem eremitério, virgem predestinada ou livro de orações.
Tenho enjoos de água, pesa-me já o corpo
depois de ver todas as naus que partiram
e ainda não sei se existem novos horizontes
para além da distância que as crianças imaginam
enquanto brincam com as estrelas na praia.
Também eu já fui criança na minha praia imaginada,
também eu escrevi nas margens da areia
e doeram-me as palavras que se desvaneceram
como se elas fossem pessoas reais e conhecidas.
Passou o tempo das naus e das crianças na praia
e hoje só restam os vestígios das gaivotas,
essas metamorfoses das naus e das crianças,
as gaivotas que vêm pousar no meu telhado
e falam comigo numa linguagem que não entendo
porque entretanto cresci e perdi a magia da infância.
Sou órfão deste país da minha memória
mas começa a chover e fecho a janela
sem saber se lá longe o mar ainda persiste.
Somos todos narcisos ainda que envergonhados,
endeusamo-nos mesmo que numa cruz de remorsos,
procuramo-nos nos espelhos embaciados
e as palavras que usamos estão manchadas de intimidade.
Quem não gosta de si está como a bela adormecida
à espera de alguém que lhe desperte a auto-estima,
quem não gosta de si está nu num castelo fechado
e sabe e sente que as paredes não lhe evitam o sofrimento
de ser e de se querer apenas a medo,
quem não gosta de si está já morto em si mesmo,
enterrado num cemitério feito de mágoas e penas.
Somos todos narcisos enfeitiçados pelos nossos reflexos
e prontos a partir em busca de novos horizontes,
espaços para além das nossas fronteiras claustrofóbicas.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Os anos passam,
possivelmente tenho rugas nos sentimentos
e os próprios pensamentos estão mais lentos
tal como a memória que se vai inexactidando.
Os calendários vão mudando na parede
e as imagens neles são sempre nostálgicas
porque recordam os dias que não podemos recuperar.
O poeta da pátria com direito a panteão nacional
dizia que se mudam os tempos e se mudam também as vontades.
Outros, porém, preferem falar apenas do futuro
prometendo paraísos ou a felicidade serena
dos que perderam o direito à rebeldia.
Os anos passam insensíveis,
indiferentes aos diferentes rumos das minhas disposições
e quando me olho ao espelho, de relance,
ainda não sei se sou quem me observo
ou se é a própria vida que se espanta
com o que fiz em nome dela.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Entre os dias e os seus despojos resto eu,
frágil, inseguro, interrompido na viagem.
Esqueço e recordo ininterruptamente
num alucinado carrossel de sentimentos
mas as imagens vão-se desvanecendo na memória
até se transformarem em fantasmagóricas impressões de sombras.
Destino-me por vontade e omissão.

Entre o que escrevo e os silêncios magoados resto eu,
incompleto, dividido, separado de mim.
Uso as palavras para recordar que vivo
mas elas devolvem-me uma realidade deformada.
Destino-me ainda e sempre por teimosia.

Entre a razão e a inconsciência resto eu,
insubmisso, rebelde, desafiador dos deuses.
Faço dos silêncios a minha residência dos segredos
e mesmo assim não estou enclausurado em mim.
Destino-me porque não o fazer seria desistir,
acreditar que a felicidade pode ser dócil
como a promessa de uma obediência abençoada.

domingo, 14 de março de 2010

50 anos

Não é ainda o momento de fazer o balanço.
Os balanços fazem-se quando termina um ciclo
e mesmo nessas altura o que interessa é o que há-de vir.
A vida não se quer em fascículos
embora seja mais cómodo avaliar o que fizemos,
preencher as colunas do deve e haver,
petrificarmo-nos num tempo que inevitavelmente já passou.
Não quero fazer balanços ainda que provisórios,
não quero regressar aos meus diários de mágoas
até porque se o fizesse não me reconheceria neles.
Viver já é difícil tarefa
para que percamos tempo a registá-la pormenorizadamente
com o vício do bibliotecário e o desespero dos que ainda não viveram.

sábado, 13 de março de 2010

Escolhemos com cuidado as palavras para mentir os sentimentos,
vestimo-las com as cores dos nossos silêncios,
acordamos nelas como se fossem a nossa casa habitual,
aprendemos a usá-las como velhos marinheiros
que ainda sonham com um horizonte por detrás da distância.

Não são apenas máscaras, as palavras,
roupas adequadas às diversas situações,
não são rostos de sombra nem deusas que o tempo envelheceu,
não são códigos secretos, as palavras,
alquimias malignas de apequenar os homens.

Pesamos as palavras como se fossem pérolas ou pedras,
disfarçamo-las com os biombos das vidas por viver,
adormecemos com espaços vazios que elas alimentam.

E mesmo assim são por vezes incómodas, as palavras,
chegamos a desejar a sua ausência
mas quando elas faltam somos apenas as inúteis esfinges
à espera que reinventem a imortalidade.

quarta-feira, 10 de março de 2010

A memória é o meu mapa de viagens
mas tenho o limite do teu corpo ausente
e não consigo capturar os momentos em imagens nítidas.
É impossível viver no passado
porque o passado é como a areia inconsistente
que escorre entre os nossos dedos ansiosos.
É impossível reviver o que não foi possível
e o que me dói não foi o que fiz
mas aquilo que não pude ou que não quis fazer.
A memória não é estratégia de sofrimento
nem uma qualquer porta para a redenção,
a minha memória é apenas a sensação de ausência
e a teimosia em manter-te enquanto eu próprio persistir.
A inutilidade cola-se-me à pele como uma segunda pele,
uma película invisível que me paralisa os movimentos.
A inutilidade sou eu quando não acredito em mim,
quando o cansaço é superior à esperança,
quando me limito a suportar o peso do mundo.
A inutilidade é naufrágio da vontade,
preguiça de ser e de querer,
cinzas de um incêndio que consumiu o sonho.
Inúteis seremos forçosamente quando mortos
mas para isso não há remédio
e por isso custa mais ser inútil em vida.

domingo, 7 de março de 2010

Tenho um caderno de bolso onde me vou escrevendo.
Aliás, sempre me habituei a escrever aos pedaços,
fragmentaria mente,
como fragmentária é a minha vida e a de toda a gente.
Não sei se invento as palavras ou se elas me utilizam
(este é o velho enigma dos poetas)
mas é meu tudo quanto escrevo.
Quando os cadernos estão cheios vou-os substituindo
e guardo os antigos nas gavetas
mas quando a vida se esgotar
que poderei fazer senão assumir a posição dos cadáveres
embora contrariado, embora sob protesto?
Num dia cinzento desaguo no silêncio.
Tenho a alma pesada e o corpo congelado.
As horas estão suspensos no relógio
e sinto que os ponteiros abrem caminho nos meus nervos,
sinto que cada minuto é um a mais na inutilidade.
Não estou porém mais triste do que ontem
ou daquilo que estarei amanhã mesmo com chuva.
Estou em casa mas não estou à janela nem enrolado em mim,
estou como estaria se disso não tivesse consciência,
sem querer perceber os mistérios da vida
ou decifrar os incontornáveis ângulos do destino
até porque não acredito que haja isso a que chamam de destino.
Sei que lá fora é um dia cinzento
porque o meu escritório tem mais sombras
e porque o silêncio das palavras é mais profundo.
Mudei de posição e de disposição.
Pararei de escrever porque as palavras gritam,
pararei de pensar porque os sentimentos cansam
e eu quero ser sem ser
enquanto o dia for cinzento e real,

quarta-feira, 3 de março de 2010

Se é para dar conselhos não contem comigo,
não tenho certezas suficientes para fazer delas uma bandeira
e reunir à sua volta um grupo de discípulos.
Vivi o que me foi possível,
escolhi os meus caminhos, caí e levantei-me
mas nada disso pode servir de regra ou dogma
e muito menos para aqueles que não são como eu
ou que simplesmente não são eu.
Procurarei ser feliz
mas a felicidade que quero, embora partilhável,
não está num catecismo nem é um código restrito
que impõe fronteiras, proibições e condena as diferenças.
Se é para dar conselhos não contem comigo,
já há demasiados pastores com os seus rebanhos
e se tiver que ser prefiro ser a ovelha negra,
aquele que é filho de deus e do diabo,
Sísifo feliz por não trair a sua condição humana.
Dizem que a vida é sonho porque nos querem dóceis,
incapazes de construir a nossa realidade,
dizem que a morte é inevitável
para que nos habituemos a morrer em vida,
têm leis para tudo e normas e preceitos,
falam em nome da verdade mesmo quando ela é obscura,
recordam-nos continuamente que somos apenas homens
e frágeis e falíveis,
estranhos animais que anseiam pelo rebanho
e usam coleiras no lugar das gravatas.
Acreditar neles é fácil e tem compensações,
acreditar desobriga-nos de pensar e de ter dúvidas.
O pioro é quando não podemos deixar de duvidar
e transformamos as perguntas em armas de inquietação,
o pior é quando em lugar da morte escolhemos a vida
ainda que em construção, ainda que imperfeita
e somos de novo Ulisses a desafiar os deuses.

terça-feira, 2 de março de 2010

Na Inquisição dos dias torturados sou um penitente,
judeu sem fé, homem sem deuses.
Feridas de sangue abrem-se-me na carne
e ouço os risos escarninhos dos espectadores,
daqueles que se limitam a assistir à vida dos outros.
Ainda não aprendi o dom da insensibilidade
e o fogo arde como um sofrimento inapagável,
o fogo é uma coroa de espinhos que me violenta a consciência.
Afundaram a minha nau das descobertas,
queimaram os meus livros e as minhas memórias,
amortalharam-me numa visão do inferno
e usaram-me para publicitar as suas ideias de ódio.
Podem até ser verdadeiras as suas verdades
mas ninguém deveria ter que morrer por elas.
Ouviram-me gritar mas permaneceram imóveis,
fechados nas prisões das suas casas cómodas.
Na Inquisição dos dias insepultos sou um penitente
e sigo os meus passos nesta infinita procissão do desespero.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Há vidas silenciosas e outras agitadas, ruidosas.
A minha, por ser minha, é equidistante de tudo quanto conheço.
Silêncio e ruído são absurdas margens
e nada persiste a não ser a sensação de ausência.
Silêncio e ruído são pedras pintadas à mão,
pedaços da pele dos dias, lenços de água
mas eu fecho teimosamente as gavetas
com medo de perder as imagens da memória.
Não uso balança para avaliar o peso necessário do silêncio
e acrescentar-lhe depois uma pitada de sonoro ruído,
não planifico os dias do desespero
nem procuro a alegria barulhenta dos anestesiados.
O silêncio não é forçosamente triste
e o excesso de barulho pode encobrir o vazio de sentimentos.
Há vidas silenciosas e outras ruidosas
mas a minha não é silenciosa nem ruidosa;
é vida apenas
e minha.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sou por inércia e sem disso ter verdadeira consciência,
sou o que sobrou daquilo que queria ser.
Não sou falso nem sincero,
persisto, teimo,
tenho ânsias de bicho aflito
e recuso a morte e as suas armadilhas.
No corpo tenho as tatuagens da saudade
e na memória a ausência arde como uma inquisição.
Não contabilizo os dias que perdi,
não colecciono agendas de mágoas,
não me quero carpideira de mim mesmo.
Sou por ínvios caminhos que são meus,
sou cavaleiro andante de triste figura,
sou marinheiro sem barco e sem um oceano misterioso,
sou apesar dos silêncios transformados em palavras.
Persisto, teimo, existo
mas não tenho ilusões de Sísifo
nem quero desafiar os deuses.
De Homero são os olhos de ver no interior da realidade,
do minotauro é a certeza da chegada do herói ateniense
trazendo consigo a morte e a fama póstuma,
de Penélope é o cansaço da inútil espera
de costas voltadas para um mar aparentemente dócil.
As caravelas que passaram além do Bojador
iam carregadas de sonhos e de impérios,
as caravelas que partiram rumo às ilhas dos amores
regressaram com marinheiros aposentados,
poetas sonâmbulos ancorados nos bancos das cidades.
Vários reis substituíram os seus reinos por densos nevoeiros
vigiados por cavaleiros de triste figura
e houve mesmo quem lhes chamasse paraísos.
Tudo isto são fragmentos da memória
de uma criança que confundiu a vida com os livros
e viveu intensamente por intermédio de interpostas pessoas.
Mais tarde houve uma menina na janela,
donzela sem dragão nem princípe perfeito,
palavras,gestos, promessas interrompidas.
Também a menina da janela se partiu
deixando só lembranças e a ausência.
Depois foi o vazio de sentimentos,
a imobilidade da esfinge que se petrificou no tempo.
Tudo isto são páginas da vida da criança grande
resistindo ainda e sempre ao desespero.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

As terríveis erínias entreteem-se a entretecer o meu destino
enclausuradas nas cavernas do medo.
São poderosas as erínias
e até os outros deuses temem os seus decretos
porque ninguém foge ao destino que elas inventam.
São inevitáveis as erínias
mas eu ignoro-as.
Podem uivar as erínias como os cães da morte,
podem incluir todas as tragédias no meu horóscopo.
Mesmo assim ignoro-as,
desnecessárias mulheres para sublinhar a morte.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Tenho saudades de água,
eu que nunca viajei para além da terra firme,
eu, o eremita no mosteiro do meu corpo.
Tenho saudades das sereias que nunca vi
e de todos os adamastores que proíbem a distância.
Tenho saudades das ilhas dos amores
e das promessas de uma eternidade gloriosa.
Tenho saudades,sim, de tudo quanto é líquido
menos das lágrimas e dos naufrágios da memória.
Esqueço-me a pouco e pouco do som do teu sorriso,
meço os dias pelos calendários impossíveis,
impede-me a memória de construir o futuro,
luto ainda e sempre contra o desespero,
inevitável é porém a ausência,
ave que continuamente vem poisar na minha janela.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Depois do Carnaval continuamos mascarados
fingindo que sabemos que não somos imortais.
Nos calendários repetem-se as boas intenções
e laboriosamente tecemos rosários de paciência.
Cobrimos com cinza os corpos apenas pressentidos
e há espinhos que crescem no interior das mãos vazias.
Na passerele da vida somos manequins,
somos vagabundos, príncipes destronados,
indefenidos seres que se alimentam de esperanças,
os loucos da cidade que imitam os doutores da fé.
Depois do Carnaval continuamos mascarados
fingindo que fingimos os fingimentos habituais,
fingindo uma seriedade que é uma segunda máscara,
imitando as estátuas e a sua impassibilidade.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

De Ulisses tenho a impaciência e a finitude
mas enjoo na viagem
e perdi a ilha antes mesmo de a conhecer.
A minha Penélope cansou-se de existir,
revivo-a apenas na memória,
a sua imagem cobre-se de sombras
e tudo é nevoeiro à sua volta.
Os deuses esqueceram-me,
entretidos nas suas guerras sem sentido
mas não lhes sinto a falta.
Quando a vida me sobrar
não terei a serenidade dos heróis antigos
nem enfrentarei a morte sabendo que fiz o que devia.
Ao menos que fique de mim uma pequena esfinge feita de palavras
a inquietar aqueles que vivem num permanente aquário.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Não invejo os deuses insensíveis
porque a sensibilidade se esgota com o passar dos séculos,
não os invejo
nem mesmo quando eles comparam os seus poderes
e são cruéis na sua crueldade desnecessária.
Não invejo os deuses
nem mesmo quando eles preparam para mim o pior destino.
Nada invejo a não ser a serenidade perdida
e não poder recuperar o tempo em que estávamos juntos.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Os deuses

Os decretos dos deuses são cruéis e insondáveis.
Para combater o tédio
os deuses transformam o mundo num circo de pulgas,
divertem-se com as desgraças dos homens,
enfurecem-se quando eles lutam pela liberdade,
castigam-nos severamente quando eles se recusam à submissão.
Os deuses são invejosos, vingativos,
piores do que os piores humanos
porque a sua memória é infinita
e a crueldade é uma estratégia para fazer passar o tempo.
Os deuses reúnem-se em banquetes para falar dos homens
e contam histórias sobre a sua credulidade.
Os deuses à noite dormem com os seus medos
e sentem-se infelizes por não serem mortais.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Eternidade, lugar de confluência de todos os desejos,
Mulher cujo corpo se nega cruelmente,
Indícios de uma promessa que foi quebrada,
Lua num céu de celofane,
Impossibilidade transfigurada em ausência,
Adeus que se recusa a ser uma despedida.
Um poeta dizia que tinha sentimentos como facas
e outro confessava que tudo o que sentia era fingido.
Eu tive o tempo de usar as palavras para fingir o que não sentia
e o tempo de rasgar a carne e libertar o sangue,
tudo em surdina e no interior dos meus labirintos.
Li os poetas e aprendi que os sentimentos
podem ser cinza e fogo, água desassossegada,
grãos de areia que a pouco e pouco constroem o deserto.
Li os poetas e não sei mais do que sabia,
continuo a alternar o tempo dos fingimentos
com os dias que abrem feridas na memória.
Sinto inevitavelmente com a cabeça
mas isso não impede que fique exausto
como um Sísifo sem ninguém que o evoque num poema.
Continuarei a usar as palavras
para evitar o que sinto,
para evitar que sinta.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O que é que se pode fazer com os sentimentos estilhaços,
as facas, as sensações exacerbadas, os medos,
as súbitas alterações na face dos espelhos?
Permaneço imóvel como uma esfinge de pedra,
finjo que o tempo é a minha muralha
e uso as palavras como guardanapos da alma.

O que é que se pode fazer com os sentimentos lágrimas,
esta água que escorre no silêncio dos dias
e se acumula no fundo de um desespero surdo?
Permaneço na transfiguração dos momentos,
parto sem sair do meu espaço mínimo,
sei porque reconheço as fronteiras da minha ignorância,
sonho porque nem a morte me pode impedir a esperança.

No limiar de um tempo que é só meu
hesito no manuseamento dos sentimentos,
visto-os de palavras, misturo-os
num espaço delimitado pela consciência
e permaneço eu apesar de todos os naufrágios.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Se é possível aos homens amar infinitamente
então que o meu amor por ti ultrapasse a morte,
ultrapasse a saudade e esta tortura que é a tua ausência.
Se é possível amar para além das palavras
que o silêncio seja o meu testemunho
e que a memória se transforme numa perpétua oferenda.
Se é possível evitar o esquecimento
estaremos os dois de mãos dadas
para além do tempo, para além da distância,
Adão e Eva a recuperar a nossa origem.
Subsisto nas margens da vida
ainda submerso num turbilhão de sentimentos.
Era simples o meu mundo e confortável,
os dias tinham horas e as horas podiam ser programadas
nem que fosse apenas na tarefa de as sonhar diferentes.
Nós éramos o núcleo de tudo, o abrigo,
o aconchego de uma presença indubitada,
nós éramos o sentido que ia para além das palavras,
nós éramos suficientes para justificar a esperança.
Depois de nós fiquei só eu e o vazio,
a ausência, o desmoronar das horas calmas.
Subsisto nas margens da vida
e a memória é a companheira que não substitui o desespero.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Sou Ulisses que perdeu a ilha e a viagem,
no interior da noite sinto a angustia do Minotauro
e foi em mim que morreram as perigosas sereias,
mulheres que prometiam o que há para além da banalidade.

Sou D. Sebastião sem império ou nevoeiro,
caravela que não conseguiu ultrapassar o Adamastor
e ficou suspensa entre o naufrágio e o tempo.

Sou saltimbanco enclausurado numa casa vazia
a treinar as piruetas diante de um espelho quebrado.

Sou silêncio submerso por uma tempestade de palavras,
destroços dos dias, máscaras dos sentimentos,
icebergues a flutuar num lago de sombras.

Sou quem fui e quem poderei ser.

Sou sonho e pesadelo, raiva,
as sensações distorcidas e os medos,
os diferentes ângulos de um mesmo reflexo
repetido nas paredes de uma loja de conveniência.

Sou o caleidoscópio de imagens congeladas,
todas elas convocando uma presença impossível,
todas elas reafirmando a tua ausência.

Sou memória e esquecimento, náusea,
relógio de água subitamente perdido no deserto
impossibilitando-me de saber o tempo e a distância.

Sou o que penso e a inconsciência,
vários rostos e nenhum deles nítido como eu queria,
nenhum deles de mármore para ultrapassar a morte.

Sou talvez a ilusão de ainda querer ser
mas essa teimosia herdei-a dos meus antepassados,
carrego-a como uma identidade,
preciso de saber de mim como quem regressa à origem
e descobre que tudo ainda está por construir.
Desenho-te nas margens de um papel imaginário,
primeiro o teu sorriso,
depois as mãos que repousam no regaço,
essas mãos que tinhas sempre ocupadas.
Tenho dificuldade em definir a cor dos teus olhos,
verdes ou castanhos conforme a inspiração.
Deixo o teu corpo na penumbra da saudade
e não sei o que fazer com este desenho apenas imaginado.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Amar-te não foi suficiente.
Por decreto do destino (em que não acredito)
foste descobrir a verdade que há na morte
e eu fiquei entre o silêncio e a ausência
a ruminar imagens e a insistir nas palavras.
Amar-te não foi suficiente.
Acreditei que era impossível abandonares-me
mas dizem que a realidade é mais forte do que a crença
e eu não gosto da realidade sem ti,
sinto que tudo se esvaziou à minha volta
e no interior de mim já não te tenho.
Amar-te não foi suficiente
e isso dói
sem que encontre palavras para justificar a tua ausência.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Com as palavras podem-se perpetuar memórias
mas elas não conseguem fazer esquecer a ausência.
Por vezes as palavras são cruéis na sua inutilidade
e dissolvem-se na boca como areia árida,
por vezes as palavras doem como gritos
e procuramos auxílio na águas do silêncio.
Outras vezes as palavras mentem a nossa realidade,
transportam-nos como tapetes mágicos
e julgamos que são paraísos os nossos pequenos infernos pessoais.
Como eu odeio as palavras hipócritas e ocas
com que preenchemos os nossos quotidianos,
como eu amo desesperadamente as palavras
sabendo que não posso esperar delas a salvação
mas mesmo assim repetindo a magia de criá-las.
Estupidamente pensamos que existimos para sempre,
movendo-nos num tempo que é só nosso,
irresistível presença no interior do espelho,
livremente prisioneiros nas nossas fronteiras,
iguais ao que a nossa memória diz de nós,
amáveis esqueletos a aguardar a morte.

Amamos apenas os nossos reflexos,
guardamos todos os objectos inúteis,
uma a uma contabilizamos as horas
insistindo nas pequenas impossibilidades,
amamos mesmo quando amar é um pleonasmo,
resistimos porque nada mais há para fazer.