sábado, 31 de dezembro de 2011

O calendário assinala que acabará um ano e começará outro.
Já foram tantos aqueles que vi passar
e mantenho a esperança de que o próximo será melhor,
mantenho apesar de tudo a confiança no futuro.
Ou isso ou ficar paralisado no tempo
convertendo as memórias em sacrários,
ou isso ou teimar em ignorar os calendários
como, se ao não termos consciência deles,
os dias deixassem efetivamente de existir.
Obviamente não farei festa,
beberei o champanhe na minha solidão
mas não deixarei de sonhar com um novo ano mais feliz.
Ainda é Natal?
Repetem-se as palavras e as imagens
mas a sensação já não é a mesma
e olho para a árvore sem qualquer sentimento de novidade.
No entanto continuo a sonhar com a neve
e com o trenó do Pai Natal a descer a rua
escorregando incólume entre os transeuntes espantados.
Deixei de colocar o sapatinho na lareira
e as prendas que dou e recebo são objetos comerciais,
substitutos dos sonhos que se foram perdendo.
Insisto em ouvir as mesmas velhas melodias
numa tentativa absurda de recuperar o tempo da infância
mas essas melodias fazem-me apenas sentir mais velho.
No entanto consigo imaginar a neve
e um único floco imaculadamente branco fica preso na janela
à espera que eu resolva combater os meus fantasmas.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Fado

Este é o nosso fado,
esta é a tristeza que se desprende dos nossos gestos e das nossas palavras,
este é o destino que os deuses reservam a quem sente em demasia
e vive excessivamente os seus próprios sentimentos
mesmo que a maior parte deles sejam fingidos.
Continuamos a ser o país de velhos marinheiros
mas os búzios já não prometem as distâncias
e temos sonhos de funcionários públicos.
Apagaram-se as estrelas que tínhamos nos olhos,
deixamos as crianças crescer demasiado depressa
e convertemos as ladainhas em poesias.
Este é o fado da nossa história,
conquistadores do nada, construtores de infinitos,
monges-guerreiros em busca da esperança.
Quem nos cantará quando só houver silêncio
e as memórias forem devidamente retificadas
para fazer parecer que afinal há paraísos?
Com quantas palavras é construída a vida de um homem?
Por vezes basta uma e tudo o resto é silêncio,
tudo o resto é tão inútil quanto as memórias fabricadas.
Nem sempre porém são nítidos os vocábulos
e gasta-se o tempo a decifrar sinais ou a ausência deles.
Não quero viver obcecado pelas impossibilidades
mas desistir dos sonhos é morrer antecipadamente,
enterrar todas as palavras num funeral encenado
e ocupar o sarcófago do silêncio com as sombras do esquecimento.
Não sei quantas são as palavras necessárias para construir uma vida
porque não há dicionários prontos nem receitas infalíveis.
Prefiro acreditar que não são as palavras que dão sentido à vida;
a vida ilumina por dentro as palavras e não pode ser substituída por elas.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

É Natal

É Natal anunciado, Natal de crise,
Natal dos anúncios falsamente alegres,
Natal das boas intenções e dos cânticos,
Natal das recordações junto à lareira
mesmo que não haja lareira nenhuma.
No ano passado o Natal foi diferente e igual
como será igual e diferente o do próximo ano.
Há algo de inalterável em todos os natais,
só nós é que mudamos lentamente,
tão lentamente que pensamos que ainda somos os mesmos
e que o Natal foi feito de propósito para nós.
Ainda não trouxe a árvore da cave,
a casa mantém o aspeto habitual
e só acenderei as velas coloridas no dia vinte e quatro.
Apesar de tudo também haverá um Natal para mim,
diferente e igual a todos os que tive e irei ter.
Na alfandega da vida inspecionaram as minhas bagagens
e só encontraram memórias e objetos inúteis
porque entretanto desisti das viagens
e fiquei num banco de jardim como um marinheiro reformado.
Limito-me a ver as ondas a embater na praia
e tenho o espaço de horizonte que me é permitido.
De vez em quando ainda tenho saudades das distâncias,
de vez em quando penso que tudo podia ser como era dantes
e imagino-me criança no pátio da velha casa.
Como toda a gente, tive sonhos épicos
mas agora sobrevivo aos dias cinzentos
sem remorsos, sem tragédias de papel.
Quando passar outra vez na alfandega
verão que abandonei os objetos
e reconstruí as memórias com palavras e silêncios.
Vive-se entre o desespero e a sombra de um sonho.
Vive-se ou julga-se que se vive
e pode até haver dias quase esplêndidos,
parecidos com aqueles que há nos livros.
Guardamos os calendários anotados nas gavetas,
temos o cuidado de não perceberem em nós sentimentos profundos
porque assusta ver nos olhos dos outros a nossa própria ansiedade.
Fazemos da morte um ritual em que somos apenas espetadores
e as memórias são construídas como puzzles de palavras.
Vive-se na indecisão entre o nevoeiro e a luz
é a única certeza é de que não há paraísos permanentes.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

E agora José,
que sonhos, que caminhos, que viagens?
Parece que só há muros onde dantes havia horizontes
e os espelhos não me devolvem as imagens do futuro.
Os relógios estão atrasados no momento
e já não consigo abrir a caixa secreta
para substituir as peças e renovar os dias.
Eu, que gostei tanto dos labirintos e dos seus enigmas,
estou prisioneiro de um feito de sombras
mas já não há cavaleiro que mate o dragão em mim
nem há donzela para salvar dos perigos.
E agora José?
Terei que responder dia a dia a essa pergunta.
Da minha janela vejo um gato preto num quintal vazio.
O gato desloca-se livre e preguiçosamente
arqueando ao de leve o lombo entre as ervas molhadas.
Enquanto acerto o relógio pelas horas oficiais
fico a vê-lo a passear-se pelo seu espaço infinito.
Invejo a sua ausência de obrigações,
invejo a naturalidade dos seus movimentos.
Relutantemente fecho a janela e saio do meu quarto.
Talvez o gato continue no quintal
mesmo agora que estou longe de casa e escrevo sobre ele.
É verdade que gosto de gatos
e que não tenho qualquer superstição com gatos pretos
mas isso não dá um significado especial a esta poesia.

sábado, 3 de dezembro de 2011

A bordo de um barco em direção a Ítaca,
levando comigo os fantasmas de Ulisses
e a perspetiva de uma ilha escondida na névoa.
Recordo os dias perdidos no diário de bordo,
recordo os sons diluídos pela distância
e o eco da tua voz a ultrapassar o tempo.
No porão guardo as arcas que trouxe da velha casa
e as memórias que sobraram da infância.
No topo do mastro mais alto perscruto o horizonte
apesar das vertigens e do nevoeiro.
Sei que passou o tempo das viagens
mas continuo no barco do meu corpo
em direção a Ítaca, em direção à esperança.
Há histórias de amor que são banais
e outras que não o são porque acabaram cedo.
São essas as que nos interessam e nos perturbam,
são essas as histórias que justificam as nossas rotinas.
É bom saber que há Romeus e Julietas
e que não somos nós quem tem que morrer de amores
porque mesmo sendo de amores é preferível evitar a morte.
Dizemos que os amantes infelizes são infortunados,
sofremos também um pouco com os seus desesperos
mas depois regressamos à vida e à realidade,
preferimos que a nossa história de amor seja banal e longa,
adormecemos imaginando que nunca haverá separação.
Passamos a vida a esconjurar demónios
mas não nos livramos dos medos e das impotências
e por isso inventamos paraísos que são armadilhas,
espelhos que distorcem as nossas imagens.
Quando eu era pequeno queria ser crescido,
queria não ter medo do escuro e dos fantasmas
mas cresci e continuo com medo do escuro,
transformei-me em fantasma de mim mesmo.
Passamos a vida a inventar desculpas
e o silêncio tem arestas que ficam nas palavras.
No entanto, agora que o tempo passou
e abandonei a casa, o pátio e a criança,
tenho uma gaveta cheia de segredos
e promessas de futuro que não cabem numa só vida.
Desço às escuras as escadas do meu sonho
até chegar à cave onde estão as caixas dos segredos
mas há esfinges em cada esquina do labirinto
e não tenho a certeza de querer continuar a viagem
porque tenho enjoos e perdi o mapa.
Desço interminavelmente sem saber as horas,
sem saber que tempo decorreu desde a partida,
sem saber mesmo se os relógios continuam a funcionar
no interior desta casa que é a minha herança.
Desço enquanto espero o final do sonho,
suspenso que estou nas teias de uma memória construída,
desço como se ao acordar fosse esquecer a casa
e enterrar de vez todas as caixas dos segredos.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Um poeta aconselhou "sê inteiro"
mas como posso se sou feito de múltiplos fragmentos,
se a vida que tenho é composta de estilhaços?
Nem sequer no que escrevo posso ser inteiro
porque as palavras são uma mistura de areia e água,
porque os momentos se ossificam nos seus reflexos
e não gosto de me ver exposto numa folha de papel.
Nem sei mesmo se quero ser inteiro
como um bloco de pedra imperturbável
ou um iceberg que só o tempo consegue transformar em água.
Acumulamos raivas, mágoas e penitências,
entretecemos os dias com os rosários dos silêncios
e quando a noite desce sobre as nossas casas fechadas
sonhamos os nossos pequenos sonhos encaixotados.
Usamos as palavras como se tivéssemos receio de revelar os sentimentos,
reverenciamos o passado e tudo o que é maior do que nós,
fingimos que vivemos só porque é decente fazê-lo
e ninguém acreditaria se fossemos loucos e humanos.
Apesar de tudo amamos com furor e desespero,
amamo-nos, amamos aqueles que nos são próximos,
amamos os estranhos e a distância, amamos o amor,
amamos até a falta de quem estávamos habituados a amar.
Por amor somos absurdos, disparatados, além das regras,
por amor somos profundamente humanos.

sábado, 26 de novembro de 2011

Herança

Herdei a insatisfação do ser humano,
incompleto animal que se questiona,
fascinado pela esfinge e os seus enigmas.
Herdei o panico diante do vazio
e a impotência de alguém que não aceita a morte.
Herdei uma biblioteca de palavras
e o desafio de com elas traduzir a vida
sabendo que tudo o que é dito é apenas um pormenor
e que o silêncio tem a consistência dos nevoeiros.
Herdei esta curiosidade que me faz ser inconveniente
e incomoda como um espinho no interior da carne.
Herdei dois mil anos de cultura
e outros tantos de raiva, violência e dor
mas teimo em preservar a esperança
porque acredito no poder da memória
e gosto de pensar que o futuro pode ser a nossa casa comum.
Chamo-te com a voz do meu silêncio,
chamo-te para além da barreira das distâncias,
procuro-te no vazio das imagens,
procuro-te nos interstícios da memória.
Amo e odeio as palavras,
amo-as quando te trazem aqui ao papel
e detesto-as porque te mentem na impossibilidade de existires.
Não regressarei à Ítaca da minha segurança,
a voz com que te chamo é a do náufrago
que sabe que todas as viagens são impossíveis.
Continuo a chamar-te sabendo que não haverá reencontro
e que o tempo converte a vida numa memória dela.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Quem me ler poderá pensar que me estou a lamentar
ou que transformei os dias num perpétuo sofrimento,
quem me ler poderá ter de mim a imagem de um romântico,
uma personagem bizarra do século XIX,
um poeta dos luares e das folhas caídas
prenunciando outonos de chuva e de tormentos.
Não estou fascinado pelos falsos espelhos
nem pretendo ultrapassar o aborrecimento através da dor,
não me escondo na penumbra das palavras
como se elas fossem cortinas entre mim e a realidade.
Quem me ler poderá até sentir os nevoeiros
mas esses nevoeiros não são meus
porque não espero os heróis que irão resgatar o futuro
nem sou um dos carneiros do rebanho dos deuses.
Gostaria apenas de ter forças para resistir ao esquecimento.
Entre o que fui e o que sou há um nevoeiro
e nele são várias as imagens de mim que desconheço.
O tempo que passou trouxe distâncias,
destruiu sonhos, fechou a maior parte das janelas
e fiquei como a criança no quarto escuro
sem sequer poder lançar o pião no pátio,
aquele pátio interceptado por quatro muros altos
que foi o meu mundo até deixar de ter um mundo meu.
As palavras tornaram-se mais amargas
e têm o sabor das pedras e das coisas inanimadas
mas mesmo assim são utensílios para manter a esperança
e posso através delas recuperar a memória.
Entre o que fui e o que sou faltas tu
e isso é suficiente para me sentir vítima dos silêncios.
Sei perfeitamente que há vidas mais desgraçadas do que a minha
e que apesar de tudo me posso considerar privilegiado,
sei-o, mas isso não me faz deixar de sentir o que sinto,
solitário viajante no interior dos seus próprios desertos,
último dos últimos guardiões dos segredos,
feiticeiro que não consegue descobrir a cura para o sofrimento.
Não espero redenção ou perdão dos deuses;
limito-me a resistir ao desespero
e conservo a memória de tudo o que foi nosso.
Não foste a minha Penélope
nem eu pude ser o teu Ulisses enfim regressado da viagem.
Fomos apenas o que foi possível,
aquilo que o tempo nos permitiu.
Depois de ti não me refugiei nos espelhos de Narciso,
guardo memórias, fotografias, objetos inúteis,
guardo tudo aquilo que ainda não foi corrompido pelo esquecimento.
A nossa história não teve um final feliz
mas não culpo os deuses insensíveis na sua imortalidade
nem me considero a vítima de todas as tragédias.
Não foste Penélope nem eu sou Homero para te perpetuar no poema.
Depois de tantos silêncios há ainda palavras que doem
e não há maneira de as evitar
porque elas fazem parte da memória.
No entanto continuarei a escrever,
não como quem cumpre um castigo
ou procura esquecer o que não foi possível
mas simplesmente como quem continua vivo
e recusa aprisionar as imagens por detrás dos espelhos.
Não podemos passar a vida a enterrar os nossos medos
ou a esconder sentimentos em palavras ocas.
Colecionei silêncios como quem coleciona aviões de papel
ou soldadinhos de chumbo de guerras desconhecidas
e agora que tenho uma casa cheia deles
continuo a sentar-me à secretária
a conviver com todas as palavras,
mesmo com aquelas que ainda me magoam.
Se tive uma memória de água ela transformou-se num deserto
mas entretanto a esfinge ausentou-se para parte incerta
e nunca fui capaz de me descobrir nos nevoeiros
mesmo quando os outros retiram deles os cavaleiros andantes,
os castelos de vento e as donzelas de serviço.
Os adamastores perderam-se nas esquinas do tempo
deixando vestígios de algas e uma concha vazia,
deixando a criança que fui na orla da praia
a escrever na areia os mesmos sinais indecifráveis.
Se tive um sonho de infinito esqueci-o
e não tenho a certeza de querer recuperar a memória
porque o tempo tornou mais pequena a casa
onde só o aquário vazio faz lembrar a criança
que um dia abandonou a praia
e os sinais que continuam indecifráveis.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Começa tudo com um silêncio que parece uma voz distante
e, sem saber como, o espaço preenche-se de espelhos
sem que eu neles possa ver a minha imagem.
Não durmo mas também não estou acordado,
nem sei se sou ainda
ou se apenas finjo de fantasma de mim mesmo.
Desço ou subo as eternas escadas dentro da minha cabeça,
habito simultâneamente as várias casas da minha memória,
debruço-me da janela com vertigens e cobardias
e adivinho que chove num sítio qualquer deste universo.
Acabo sempre por descobrir que a voz tem corpo de estátua
e o silêncio é feito destas palavras que insisto em escrever.
Tenho profundas saudades da vida que tive
e que só agora sei que foi feliz
porque na altura estava mais preocupado com o futuro
e tinha pressa de atingir já não sei que horizontes.
Tenho profundas saudades de tudo o que fui,
não porque considero que foi tudo bem feito
mas pela impossibilidade de o voltar a ser.
Mas o que é mais doloroso são as saudades de ti,
a insuportabilidade da tua ausência,
a crueldade de ter que viver para além da tua morte.
Sou viciado nas palavras,
venero-as, exorcizo-as, deixo-as arder
nas chamas e nas cinzas dos dias,
instalo-as em altares que depois destruo
só para sentir o desespero dos desiludidos,
deixo que elas se apossem dos meus segredos
mas não permito que ocupem a minha imagem nos espelhos
porque tenho medo do que há depois do esquecimento.
Há muitos mundos diferentes dentro da minha cabeça
e são todos meus
mas por qualquer razão que desconheço
são outros os que habitam neles,
são outros os heróis e os vilões das minhas histórias.
Nunca sei como acabam as histórias
e os mundos confundem-se nos nevoeiros das palavras.
Nunca quis ser imperador dos meus mundos,
nunca sonhei finais perfeitos e paraísos desinfetados
mas por vezes sinto-me estrangeiro em mim,
alguém que se enganou nas páginas de um livro.
Há muitos mundos diferentes dentro da minha vida
e as palavras são apenas o passaporte para a viagem
sabendo que ficarei irremediavelmente nas suas fronteiras.

domingo, 13 de novembro de 2011

Sabes, foram muitas as palavras que não te disse,
foram muitas as coisas que deixei de fazer contigo
e todas as impossibilidades doem no mais fundo da carne.
Sabes, nada mais foi como seria
e hoje sou sem ti apenas a metade.
Agora já não são possíveis as palavras entre nós,
de ti só tenho a ausência e a memória
mas sei que sabes que estarás sempre comigo.
Tenho medo de me esquecer de ti,
de te perder definitivamente nos nevoeiros da memória.
Com o tempo a tua imagem empalidecerá
e a nitidez de tudo ficará apenas nas palavras
mas também elas são impotentes para combater a distância.
Enquanto poder resistirei ao esquecimento,
resistirei a este insuportável sentimento de abandono
e estarás comigo sem envelheceres no tempo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Gosto do silêncio mas creio que não poderia viver sem as palavras,
sem o corpo delas vestido de medos e desejos,
sem a expetativa de as ver chegar de improviso
abandonando-me logo que persisto em fazer delas minhas prisioneiras.
Gosto das palavras quando elas são a nossa pele
e não quando servem de biombos,
gosto das palavras que não se transformam em gritos
nem são farpas a prolongar a violência.
Gosto das palavras que não nos escondem por detrás dos espelhos,
gosto quando adormeço na sua companhia
porque sei que nunca estarei sozinho.
Há distâncias impossíveis que nos separam
e ainda luto para não perder a tua imagem.
Tenho medo de que a memória se transforme em areia
e escorra no interior das palavras ocas,
esqueletos a recordar o que foi a carne dos dias.
Tenho medo de que a vida se transforme em banco de espera
sem nunca saber se o comboio está atrasado
ou se fui eu que me atrasei no momento.
Há distâncias impossíveis que não cabem nas palavras
mas resistirei ainda e sempre ao esquecimento.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Cartas de amor

Também eu escrevi cartas de amor
mas só me sinto ridículo por não as poder continuar a escrever,
sinto-me enganado por um tempo que não teve misericórdia
e passou deixando as cartas de amor que ninguém lê.
Tenho-as na gaveta no fundo de um armário
e é como se elas estivessem no fundo da memória
num lugar inacessível mas ainda assim presente.
Não as queimei mas é como se o tivesse feito
só que o calor das suas cinzas imaginadas
cristalizou-se nos múltiplos fragmentos das imagens.
Escrevi cartas de amor, confesso
e penso que ridículos são os que nunca amaram.
Antes de os silêncios serem só os sinais do desespero
eu imaginava-os com corpos de palavras,
tentadoras sereias a prometer viagens.
Antes de o tempo ficar cristalizado na memória
eu era maior do que a minha realidade
e ainda assim sentia vertigens do futuro.
De muitos antes e depois se faz uma vida proibida
e eu sinto que já não tenho mais tempo nem silêncios.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Sou um vagabundo das palavras,
persigo-as mas sinto que elas são a minha miragem
e estou perdido num labirinto sem paredes,
lugar que sobrou da última residência de Polifemo.
Outrora as palavras eram as fronteiras da minha segurança
e eu era o rei de um reino de sonhos
mas depois os céus desabaram sobre o meu corpo nu
e as palavras não me protegeram do desespero
porque eram elas próprias o desespero.
Outrora a memória não era feita de palavras
mas agora sei que o tempo tem regras próprias
e serei sempre vagabundo da vida que queria ter.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Podem-se plantar rosas nos áridos desertos
ou trazer à vida homens que morreram no fundo de si mesmos?
Nos dias de hoje só há milagres tecnológicos,
previsíveis mudanças permitidas pelas leis,
pílulas de esperança medicamente prescritas
para manter o desanimo em banho maria.
Nos dias de hoje as palavras são pesadas e medidas
para dizerem apenas aquilo que se pretende delas
e se alguém ultrapassa os limites da permitida loucura
há métodos eficazes de impor a normalidade.
Continuamos à espera dos D. Sebastiões dos nevoeiros
e entretanto somos felizes à nossa maneira,
transformamos a vida num reality show permanente,
esgotamos o tempo como se não tivéssemos memória.
Quando chegarão os dias da inocência?

domingo, 17 de julho de 2011

Os dias têm laminas de triturar memórias
e o que sobra é deformado pelas palavras.
Mesmo assim insisto em escrever
como se o que escrevo tivesse real importância
ou possa de alguma maneira recuperar as memórias perdidas.
Os dias alongam-se numa monotonia dolorosa
repetindo as horas, reduzindo os minutos a sonolências
e sobretudo fazendo-me acreditar que o tempo é circular.
Mesmo assim escrevo
ou melhor, é por isso que escrevo;
escrevo para recusar este tempo de cadáveres
e para impedir que em mim a memória se transforme em destino.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Se alguma vez sonhei ser um cavaleiro andante
em busca de um qualquer santo Graal
penitencio-me.
O meu destino é não ter destino,
partilhar a condição das vítimas da Inquisição,
ser perseguido, sobreviver no gueto de Varsóvia
só para justificar a crueldade dos meus inúmeros carrascos.
Não fui talhado para os paraísos de encomenda
com velas, anjos, arcanjos e espíritos sem corpo
mas não esqueço os infernos reais que construíram
em nome das mais diversas crenças e razões.
Se alguma vez sonhei ser mais do que humano e mortal,
anjo ou demónio, o que sobrou das ilusões dos deuses,
penitencio-me.
Se sobreviver será na memória das palavras
e não terei remorsos por ter procurado a felicidade.
Há uma sabedoria profunda nas palavras
povoada de enigmas, paradoxos e becos sem saída.
Há uma ignorância perigosa nas palavras,
a ilusão de que elas podem substituir a vida.
As palavras não são espelhos nem instrumentos dóceis,
as palavras não são metáforas de metáforas
ou colares de pérolas que alguém roubou aos deuses.
Se não houvesse em nós tantos silêncios
como poderíamos ainda acreditar no poder das palavras?

terça-feira, 28 de junho de 2011

Nietzsche e Zaratustra

Dizem que Nietzsche enlouqueceu no cansaço de Zaratustra
mas muito tempo antes da morte dos deuses
já os dois tinham consciência de que o tempo é uma maldição.
Zaratustra preferiu converter a sua revelação em silêncio
e com ele forjou as janelas do esquecimento.
Nietzsche ficou porém prisioneiro das palavras;
foram elas que lhe contaram da traição de Zaratustra,
foram as últimas companheiras nos claustros da morte.
Nietzsche e Zaratustra, nenhum dos dois sou eu,
nenhum deles é o alicerce do meu mundo
porque escolhi um mundo sem fronteiras
e sem muros a impedir a liberdade da distância.

Zaratustra

Zaratustra é o nome que damos à nossa vontade de ultrapassar a superfície da vida
e mergulhar na vertigem de um tempo que ciclicamente se repete
e subir à mais alta das montanhas das nossas ilusões.
Zaratustra tem o sabor do mel das abelhas selvagens
e a violência de uma tempestade inesperada de Verão.
Zaratustra é um mago que denuncia a inutilidade da magia
e aponta o dedo aos feiticeiros que se julgam superiores aos seus rebanhos.
Nas palavras de Nietzsche, Zaratustra é sinal de mudança,
anúncio de um novo tempo que anula o próprio tempo.
A mim fascina-me o falso misticismo de Zaratustra,
a sua falsa inocência, a sua falsa simplicidade.
É Zaratustra ou Nietzsche quem nos convoca para abandonar o espelho
em troca de uma verdade que pode até mentir quem não seremos?

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Em dia de exame de Matemática

As contas da vida cada vez são mais difíceis de fazer:
éramos dois e fiquei só eu
numa operação sem raízes quadradas ou hipotenusas,
tínhamos sonhos e ficou a memória deles,
memória fragmentada e prisioneira das palavras.
Nunca fui bom a matemática
e não estou disposto a multiplicar mágoas
ou a dividi-las por ilusões perigosas.
Nunca se devem somar os sofrimentos
ou subtrair a vida ficando apenas com os reflexos.
Quando nos reduzimos a contabilistas do deve e haver
o enigma que fomos fica cristalizado num espelho
à espera do momento em que alguém o venha quebrar
estilhaçando a esperança e o que de nós restar.
As contas da vida são por vezes surpreendentes:
julgávamos que os dias tinham superfícies transparentes
e quando os reunimos num caderno de impressões
descobrimos que nele há muito mais do que horas e minutos.
Razão teriam aqueles sábios improváveis
que defendiam que não se podem substituir as almas por números
ou vice versa
porque o universo é maior do que um livro
mesmo que o imaginemos com as páginas em branco.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Ainda me dói a possibilidade dos dias diferentes
e essa dor surda e persistente arranha-me a alma
ou aquilo a que antigamente chamavam alma
porque não sou dado a esses sentimentos metafísicos.
Não é minha intenção transformar a dor no meu destino
mas serei sempre o que sobrou da tua ausência.
Não é possível revestir completamente a dor de palavras
e mesmo que o fosse isso não aliviaria a dor
nem tornaria as realidades trágicas mais aceitáveis.
A dor é dor apesar das palavras e das metáforas
e não cabe no poema as fronteiras da mágoa
porque tudo o que está para além do silêncio é indizível.

domingo, 19 de junho de 2011

E quando, por detrás do tempo, me chega a tua voz
eu estremeço na nudez dos meus sentimentos.
Ainda tenho estilhaços dos dias interrompidos
e continuo a querer reconstituir a imagem
sabendo que o tempo deixou de ter magia
porque as coisas são feitas da poeira das palavras.
A tua voz tem o poder do silêncio e da impossibilidade
mas não recupera os estilhaços do tempo.
É perigoso explorar as margens do silêncio;
encontramos os nossos medos e paisagens desertas,
desenterramos os espelhos partidos e os brinquedos esquecidos,
regressamos à casa velha e aos quartos escuros.
Por mais serenos que pareçam ser os silêncios
eles escondem pesadelos e engrenagens soltas,
ameaçam a nossa previsibilidade
abrindo espaços entre a nossa pele e a realidade.
Os silêncios têm a teimosia da chuva intermitente
e por isso são perigosos como sereias misteriosas.
Os silêncios segregam nevoeiros
onde se adensam os nossos nevoeiros interiores.
É perigoso ultrapassar os limites do silêncio,
não porque haja esfinges ou árpias a anunciar a morte,
mas por ficarmos sozinhos com nós mesmos
sem encenações ou grandes frases de ocasião.
Os silêncios são os nossos íntimos reversos
e é sempre perigoso olhar para nós sem ser nos espelhos.

domingo, 5 de junho de 2011

Quem não tem medo das esfinges,
essas mulheres de sal e areia
que vivem nos nossos desertos interiores?
Nem mesmo Édipo escapou aos seus sortilégios
e o enigma do homem tornou-se mais pesado do que um destino.
A única esfinge que conheci estava disfarçada de estátua
e na sua origem o vazio ocupa o lugar da memória.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Não escrevo para me consolar da vida que não tenho
ou dos sonhos de que tive que desistir.
Não escrevo para recuperar o meu pesadelo de esfinge
ou disfarçar a areia de um deserto por detrás do espelho.
Não escrevo porque o tempo me falta
ou porque me cansa a miragem de uma imortalidade de papel.
Escrevo apenas porque escrevo
e isso não me transforma num esboço de destino.
Os paraísos transitórios a que conseguir chegar serão privados
e deles não ficarão registos nas folhas dos dias.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Continuo obstinado a escrever-me nos cadernos dos dias.
Desenterro da memória pedaços desconexos de mim
mas não me consigo reconstituir em corpo inteiro
porque entretanto perdi o meu corpo
num qualquer cruzamento do tempo.
Desconfio dos espelhos concêntricos
e prefiro ser mestre e discípulo das palavras,
cativo-as, submeto-me a elas, convoco-as
até que elas dêem sentido às horas que passam.
Encontrar-me-ei no espaço entre as palavras e os silêncios
mas isso é tema que os meus cadernos não contemplam.
Éramos dois no pedaço da praia deserta. Amanhecia.
Teriam sido fáceis as palavras
mas naquele tempo tudo era novidade
e os nossos corpos faziam persistir o momento.
Nos teus olhos eu não me limitava a ver o meu reflexo
e, se me perguntassem, diria que acreditava no amor.

Continuávamos os dois na mesma praia. Anoitecia.
As palavras eram pesadas como pedras,
eu já não te olhava nos olhos com medo do inevitável
e as despedidas foram breves e inúteis.

De nós os dois nem sequer a praia sobreviveu.
Não é noite nem dia. O tempo passa simplesmente
com aquela crueldade que julgo pertencer aos deuses.

Não posso ter remorsos por ter tido o que tive,
não posso lamentar o tempo em que fomos dois na praia.

Qualquer dia vou libertar a areia que guardei dessa praia
e então talvez o tempo deixe de ser a minha prisão.
A pedra tem remorsos da ferida que abre na cidade,
remorsos que escorrem dos cartazes rasgados
e das luzes coadas pelas janelas semi-fechadas.
As palavras recusam aprofundar os nevoeiros
e são apenas sombras que encobrem outras sombras,
vestígios de silêncio e cadáveres contra vontade.
Com a pedra das palavras imagino a cidade,
reconstruo-a rua a rua, casa a casa
mas deixo por acabar o pátio da minha infância.
Quem me pode censurar pelo musgo que cobre a pedra
e pelas palavras que nunca fui capaz de usar?
Quem, a não ser eu, pode compreender a estátua
que vigia impassível a entrada e a saída da cidade?
Confesso, sou o que resta da cidade imaginada
e da poeira do meu corpo poderão ressuscitar sonhos.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Somos do tamanho das alturas a que chegam os nossos sonhos
e ainda maiores porque herdeiros do infinito
e da mesma matéria de que é feito o pó das estrelas.
As vidas não se fazem com lamentos
nem os espelhos podem albergar a dimensão humana
porque são feitos com a carne das esfinges.
Mesmo quando querem que os desertos sejam o nosso horizonte
há muita mais distância do que aquela que pintam nas paredes
e a viajem poder ser também o retornar à origem.

Apocalipse

Avançam as matilhas com as garras preparadas
e trazem consigo os nevoeiros do passado,
as sombras dos dias sombrios e desesperados,
o que restou dos sonhos triturados.
O futuro tem forçosamente que ser a repetição do que já foi
e o paraíso é uma nesga de terreno ao sol
nem que seja um simulacro de jardim por detrás das grades.
São múmias que apenas adensam o deserto em nós
e chegam a convencer-nos de que a esperança é um desperdício
porque já está tudo entretecido na vontade dos deuses.
Os maiores dramas passam-se no silêncio
e não há imagens deles a preencherem os ecrãs.
É impossível escrever todos os nomes no muro das lamentações
e algumas vezes as vítimas e os carrascos são os mesmos
aproveitando a mudança da situação
e aperfeiçoando os gestos e os gritos.
De tanto se mediatizar a violência
transformou-se a dor em hábito banal
e construíram-se edifícios de desculpas
para confirmar que a morte de alguém é apenas estatística.
Os maiores dramas não são publicitados
porque só o sofrimento encenado é espectáculo
e as vítimas que não são fotogénicas
devem absolutamente permanecer no anonimato.

sábado, 21 de maio de 2011

O Homem

O Homem:
esse bicho aflito,
esse animal absurdo,
essa fronteira ambígua entre o nada e o infinito.
Enigma, equívoco,
erro de cálculo dos deuses
ou apenas um pormenor do Universo?
Sísifo ou Prometeu,
Ulisses que recusa a submissão aos deuses
e faz da viagem os alicerces da liberdade,
o Homem não cabe numa equação cabalística
e é mais profundo do que qualquer silêncio.
O tempo e a memória são a nossa condição
e temos a obrigação de renovar a esperança.
Peço desculpa por não ser aquilo que gostariam que fosse,
peço desculpa por não preencher a minha vida com verdades
e viver à sombra delas
tendo sempre uma desculpa à mão
para explicar a minha cobardia de homem frágil.
Sei que seria mais fácil se ao menos fingisse,
se disfarçasse a minha inquietação
e usasse um espelho em lugar da identidade.
Peço desculpa por persistir em ser quem sou
porque me ensinaram a ser fiel a mim
e a não trocar a procura pela comodidade da resignação.
Peço desculpa mas continuarei a recusar o destino
e tentarei construir a minha liberdade.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Não me peçam para ser feliz à força,
simplesmente não me queiram à vossa semelhança,
fiel devoto das futilidades convertidas em verdades.
Cada homem escolhe os seus próprios caminhos
e só depois de os percorrer
é que poderá saber se eles são à sua medida.
Como dizia o poeta António Machado,
é com os nossos passos que construimos os caminhos
e somos os roteiros percorridos
e aquilo que ainda falta percorrer.
Nos livros, as vidas parecem mais nítidas
mas não há nenhuma vida por empréstimo
e ninguém alcançara os horizontes em nosso nome.
Talvez eu esteja errado e vós estais certos
mas só mudarei de rumo quando disso estiver convencido
e não porque me prometeis tentadores paraísos.
Agradeço o vosso interesse mas prefiro ser eu a escolher
porque a vida é minha
e estou pronto a pagar as consequências das minhas escolhas.
Sei que gostariam de me ver feliz,
de me ver mais parecido com os vossos espelhos
mas existe em mim uma inquietação
que me obriga a tentar simplesmente ser quem sou
sem me procurar nos catálogos das vidas programadas.
O espaço e o tempo são ilusões perigosas,
dizem os que preferem a tranquilidade das cavernas
e se habituam às imagens que espelham o seu vazio.
Livrai-vos de desejar o impossível,
repetem em ladainha os cultores da mediocridade,
todos os que se contentam com as sombras
e vivem nos escombros das casas que foram seguras.
Eu, que não acredito nos seus paraísos com grades nas janelas,
sou a ameaça, a inquietação e a raiva,
viajo destruindo as barreiras e os limites,
desafiarei a morte ao não aceitar a passividade dos desistentes.
Que me importa se ainda existem inquisições nos olhares escandalizados
de quem me preferia subjugado, fiel a uma qualquer verdade?
Eu, que não sou santo nem demónio
e moro onde mora a minha liberdade,
sou a subversão, a criança que teima em perguntar
mesmo quando insistem em que todas as respostas foram já dadas.
Que me importa o futuro na forma de paraíso
se por causa disso houver injustiça e morte?
Eu, que não faço parte de nenhum rebanho
e não sou candidato a profeta ou a líder de causas,
imagino que um dia acabará a escravidão
e teremos o mundo que os deuses nos proibiram.
Que me importa que digam que sonhar é próprio da infância
só para me obrigarem a aceitar a condição de cadáver adiado?
Não quero trocar as cores do desejo
pela segurança de uma coleira bem apertada,
não quero que digam que fui bem comportado
à imagem e semelhança dos modelos institucionalizados.
Que me importa que sejam muitas as regras e as proibições
e os memoriais estejam atafulhados de castigos?
O espaço e o tempo são o oceano onde navego
e desejo tornar real o impossível
sem no entanto me ambicionar conquistador de um qualquer paraíso.

sábado, 14 de maio de 2011

O que é que se pode dizer de uma filha que faz vinte anos?
Só me lembro da música de Serge Reggiani
mas as coisas não são exactamente como as da canção,
a realidade tem sempre mais perspectivas do que as da poesia.
O que é que se pode dizer a uma filha que faz vinte anos?
Sinto que todas as palavras são inconvenientes
e os silêncios não são necessariamente sinais de sofrimento.
Sinto que muitas vezes as palavras são inoportunas
e não reproduzem a profundidade dos sentimentos.
O tempo persiste na memória
e continuaremos a combater a morte.
Carrego o peso dos meus sonhos e das minhas desilusões,
igual a todos os outros homens:
pequeno na mesquinhez dos espelhos concêntricos
e infinito nos horizontes que transbordam muros.
Transporto a inquietação como uma chama acesa
mas recuso as cinzas dos quotidianos mortos.
Tenho o vício de mastigar as palavras,
remoê-las, mantê-las na caverna da boca
e depois deixá-las navegar no branco das páginas.
Não sei se o tempo será indulgente comigo
e continuo a não desejar o favor dos deuses
ou sequer a planificar um paraíso privado.
Basta-me a consciência e a memória
e estou tranquilo na minha inquietação permanente
de quem se busca para além dos livros e das receitas consagradas.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Não quero esquecer-me de quem sou;
não é para isso que escrevo
e sou carcereiro e prisioneiro das palavras,
Sei que a memória não é um espelho transparente
ou uma linha recta e nítida num horizonte branco.
Sei muitas coisas e a maior parte delas são inúteis
porque ninguém nos ensina o que é verdadeiramente importante.
Não quero ser poeta das minhas desgraças;
não é por isso que escrevo
aqui neste papel que é a minha residência temporária.
Sei que há tragédias maiores do que uma vida
porque as vejo quotidianamente nos noticiários.
Sei que os espelhos de Narciso nos atraem
transformando-nos em esfinges das nossas próprias sombras.
Escreverei enquanto as palavras tiverem densidade
e não tiver necessidade de as usar como biombos
para me esconder da minha verdade,
As palavras, de tanto usadas, acabam por ficar empedernidas,
lúgubres ameaças de um silêncio primordial.
Creio que me cansei de descer às cavernas de Polifemo,
creio que o cansaço transformou as palavras em nevoeiro
e entretanto perdi as bússolas e os mapas,
perdi o barco e a própria sensação da viagem.
As palavras adquiriram a cor da terra
e deixam-me na boca um sabor a cinzas e a ausência.
Porém, ainda não estou viúvo das palavras,
já me basta a realidade e as horas mortas,
Continuarei a tentar transpô-las para o papel
num ritual que de sagrado só tem a heresia.
Mesmo quando os dias são normais e as horas mornas,
mesmo quando nos calendários as datas se repetem
eu sobrevivo nas margens do abismo
e nunca aceitarei as realidades mortas.
Com as palavras viajo no impossível
e os meus mundos são construídos de imagens e memórias.
Mesmo quando nada parece atormentar-nos
o tempo transforma-se em labirintos intermináveis
e neles há algo da nossa identidade que anoitece
como se nos obrigassem a permanecer no quarto escuro.
Com as palavras multiplico as imagens,
estilhaço os espelhos, sou incêndio e cinzas,
deito abaixo as paredes do quarto escuro
e descubro que tenho qualquer coisa de esfinge
porque ainda ando à procura da minha origem.

sábado, 26 de março de 2011

Só eu envelhecerei no passar dos dias,
no dizer das palavras e na sua lenta mastigação.
Tu ficaste prisioneira num vórtice do tempo,
só te sei à distância, envolta nas névoas da memória,
só te encontro na antecâmara das palavras.
Só eu sentirei o peso das palavras que ficaram por dizer
e terei dificuldade em recordar com nitidez os momentos.
Tu és a minha mais cruel impossibilidade.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Podemos ser felizes de muitas maneiras,
insuspeitas, inusitadas ou mesmo as habituais,
aquelas que têm direito a legendas
e as que só aparecem no interior dos sonhos.
O que interessa é que podemos ser felizes
apesar dos paraísos com que nos querem limitar a vida.
Não escrevo para os outros
porque acredito que não estão interessados em saber o que sinto.
Não escrevo para os deuses
para que tenham pena de mim
e alterem o destino a que me condenaram
até porque não acredito no destino nem nos deuses.
Não escrevo para mim
porque sentir-me quem sou incomoda-me
e as palavras abrem feridas
na minha pele marcada pelas memórias.
Escrevo, empurro a minha pedra de Sísifo
à procura do sentido da existência.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Ser espectador da vida dos outros é um castigo
porque não posso ser eles
porque provavelmente a sua vida é mais interessante do que a minha
porque não têm as mesmas fronteiras que eu.
Ser espectador da vida dos outros é um alívio
porque sinto que há coisas mais importantes do que eu,
realidades mais reais do que os meus pensamentos.
Somos claustrofóbicos
até nos apercebermos de que o mundo não gira à volta do nosso umbigo.
Somos ilhas rodeadas de pânico
até descobrirmos que os outros não são o nosso inferno
mas a condição da nossa própria existência.
Desconheço-me e reconheço-me no interior da mesma palavra
e sei que o silêncio magoa e consola
como se fosse uma ferida e a sua cura.
Sou quem resiste à superfície dos espelhos
e tenho abismos e poços de água estagnada
onde o luar das palavras não se reflecte
porque até as próprias sombras temem o vazio.
A esfinge do mito inquiria os viajantes
mas a minha esfinge está cansada das memórias
e insiste que ninguém tem um destino marcado.
Quase que me acomodo à minha realidade
mas depois cresce em mim a insatisfação e a raiva
e regresso aos tempos de Ulisses fugindo do paraíso.
Esqueço-me no interior das palavras interditas
e por instantes posso até ser da mesma matéria que a esperança.

sábado, 19 de março de 2011

Há palavras que são convites ao silêncio
e outras que são desesperos mudos, gritos.
Quantas palavras cabem num olhar de medo
e quantas desilusões há numa palavra recusada?
As palavras podem ser farpas na pele dos dias,
as rugas do tempo a converter a memória num retábulo.
As palavras são sinais mas magoam com a crueldade que pomos nelas.
É difícil falar das palavras com palavras,
é como descer aos abismos da consciência,
ressuscitar fantasmas, reconstruir espelhos.
As palavras não são desejos mas têm a matéria dos sonhos,
provocam arrepios nos papeis que por elas esperam,
sabem a esperança e a mundos de infância.
É impossível falar das palavras sem palavras,
essas esfinges que nos habitam o corpo
e dizem de nós os segredos e as mentiras.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Deixai-vos de filosofias,
dizem-vos os professores das respostas únicas,
os mestres dos ensinamentos prolixos e incontestáveis.
Questionar continuadamente cansa e aborrece,
aconselham com a sua experiência de séculos,
questionar é inútil, é de ignorante,
dizem com o saber que recolheram nas enciclopédias.
Persistir no inconformismo é próprio dos jovens rebeldes,
dos marginais e dos que não têm família,
sussurram quase que a medo os que amam a ordem,
incontornáveis respeitadores da situação seja ela qual for.
Filósofos e poetas são os loucos da nossa sociedade,
asseguram os que se afirmam como modelos da normalidade.
Deixai-vos de filosofias, de poesias e de todas as inutilidades,
deixai-vos de quer mudar o mundo.
porque não haveis de vos submeter ao destino
como obedientes ovelhas dos ordeiros rebanhos?
Sem filosofia e sem poesia, sem rebeldia,
a história dos homens poderia ser resignação e medo.

terça-feira, 15 de março de 2011

Ninguém nos impede de sonhar
mas podemos sonhar a preto e branco ou a cores,
podemos ter muralhas nos desejos
ou querer ultrapassar os horizontes permitidos.
Há cada vez mais regras e proibições,
cartilhas, conselhos e conselheiros, pastores de almas
e dizem-nos que devemos ter uma vida planificada.
Ninguém nos limita os sonhos a não ser nós mesmos
porque estamos habituados a que a obediência compensa.
Quando nos ameaçam com os remorsos
não podemos deixar que a vida fique prisioneira do pecado
nem devemos acreditar na primeira promessa de paraíso.
Sonhamos o que somos e o que queremos ser
e nunca é tarde para nos reinventarmos
num mundo que não seja o nosso inferno.
Não pertenço à geração à rasca.
A minha geração é a das utopias que se foram desvanecendo
enquanto nós próprios nos íamos acomodando à normalidade,
a minha geração é a da aprendizagem da liberdade.
Não acho a minha geração melhor ou pior do que a de agora,
os tempos são outros e outras talvez as formas de expressar os sonhos.
O que importa é não perder a capacidade de sonhar
e não estar na vida a medo, amordaçados,
incapazes de querer da realidade também o impossível.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Aniversário

Neste dia em que é costume sentir o peso dos anos
penso em ti sem desespero,
com a nostalgia que se tem pelas coisas que perdemos.
Não vou rever os calendários,
não vou contabilizar a tua ausência
nem fazer relicários com as fotografias
numa tentativa inútil de reter a tua imagem
na perfeição dos momentos irrecuperáveis.
Sem ti sou menos eu
mas continuo a teimar contra a fatalidade.
Não quero os meus dias revestidos de lágrimas
e se são sempre para ti as minhas palavras
não as quero mausoléus de ilusões proibidas.
Neste dia em que é hábito analisar as rugas do tempo
não me queria tão prisioneiro em mim
mas não anseio pela liberdade do esquecimento.
Sempre julguei que envelheceríamos juntos
e neste dia sinto mais o quanto me fazes falta.

domingo, 13 de março de 2011

Os domingos são dias da família,
das lentas romarias aos centros comerciais.
Nos domingos a mãe lava a roupa, passa a ferro,
faz um almoço melhorado no forno
enquanto o pai lê o jornal de pijama
e espera a hora do relato do futebol na rádio.
Nos domingos não há escola
e o tempo arrasta-se apesar da televisão.
Hoje a Sofia estreou o vestido novo
e o João sujou a camisa branca com nódoas de fruta.
Felizmente que amanhã não é domingo
e até podemos fazer o elogio da família,
esse sagrado alicerce da nossa sociedade.
Quando te chamo em silêncio,
sem lágrimas e sem gritos,
é o silêncio que responde.
Tornás-te-te silêncio,
tu que eras a força e a tempestade
e é no silêncio que posso estar contigo.
São de silêncio as tuas palavras
e com elas construo o teu corpo de memórias.
É em silêncio que te digo da falta que me fazes
e não há palavras para traduzir o teu vazio em mim.

sábado, 12 de março de 2011

Senhora, estás longe,
mais longe do que alguma vez posso estar
e não tenho meios de chegar até ti.
Senhora, vives na minha memória
mas isso não acalma o meu desassossego.
Como nas cantigas de amigo, senhora,
apenas posso lamentar a distância entre nós
mas sei que é impossível reencontrar-te.
Senhora, só sei que não posso esquecer-te.
Mãe, conta-me histórias
enquanto ainda tiveres memória das coisas,
conta-me histórias para não ter medo do escuro
porque sou uma criança grande com muitos medos.
Não precisam de ser histórias de animais que falam,
não têm que ter princesas, dragões e finais felizes,
basta-me que a tua voz me faça regressar à infância
quando o mundo era uma perpétua novidade.
Mãe, conta-me histórias
para eu não pensar nas coisas de adulto que tenho que fazer
e nas palavras vazias que tenho que utilizar
para fingir os sentimentos que é suposto ter.
Mãe, diz-me porque é que tudo era mais simples antigamente
quando tinha um pátio para brincar.
Mãe, conta-me histórias
mesmo que pareça que não estou a ouvi-las.
Mãe, conta-me histórias
conta-me só histórias mesmo que saibas que não acredito nelas
porque já não consigo acreditar em nada.
Mãe, enquanto houver histórias eu posso talvez ser feliz.

quinta-feira, 10 de março de 2011

De amor não se morre mas de ódio sim.
Talvez não haja amor sem sofrimento
mas o ódio é um veneno que nos demoniza
e converte os dias em lugares de inferno.
Não é possível deixar para amanhã o amor,
adiar a esperança ou negar que todos queremos ser felizes.
Não é possível justificar a violência,
pretender que a nossa força bruta pode ser razão
e deixar que tudo aconteça conforme planeado.
O amor torna-nos mais humanos
mesmo que à custa de alguma racionalidade
mas o ódio esvazia-nos por dentro,
transforma-nos em cadáveres prematuros
e, pior do que isso, fabricantes de cadáveres.
Sim, acredito no amor porque fizeste parte da minha vida
e nem sequer tenho ódio aos deuses que te roubaram de mim,
apenas saudade que é ainda uma das formas do amor.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Não repetirei a viagem de Ulisses.
Faltam-me as forças e já não tenho Penélope
nem ilha segura onde ancorar o meu corpo.
As sereias banhar-se-ão nas águas da minha amargura
e só Polifemo compreenderá o vazio das minhas palavras.
A verdade é que estou demasiado fechado em mim
para poder desejar o longe e a distância.
A verdade é que já não sei qual é a minha verdade
e tenho muitas zonas de sombra na memória.
Não repetirei a viagem de Ulisses.
Poderei fazer outras viagens mais serenas,
poderei ainda ter que combater os meus medos mais profundos
mas tudo acontecerá sem a intromissão dos deuses
porque estou cansado de querer uma felicidade perfeita
daquelas que se escrevem nos poemas.

terça-feira, 8 de março de 2011

Havia uma fábrica de máscaras em frente da minha casa da infância.
Eram máscaras de papelão, mágicas
e, ao usá-las, era como se mudasse de corpo
e fosse na verdade o pirata dos meus sonhos,
o Sandokan dos livros que li,
o comandante de corsários e explorador dos oceanos.
Hoje, as máscaras são diferentes e também os piratas,
o Carnaval acontece na televisão
e a criança que fui abandonou a casa.
A fábrica de máscaras fechou
e dela só sobrou a memória e este esboço de poesia.
Neste Carnaval da vida estamos mascarados de homens civilizados.
Fingimos aquilo que gostaríamos de ser
ou o que os outros querem que nós sejamos,
assumimos os nossos fingimentos como realidades
e cobrimos tudo com a cortina das palavras.
É Carnaval, ninguém leva a mal
mas debaixo da máscara sufoca a nossa identidade
e acabamos por ser os fantasmas de nós mesmos,
crianças que querem desesperadamente ser adultos
nem que seja à custa da sua liberdade.

segunda-feira, 7 de março de 2011

A grande lucidez dos deuses foi terem deixado o mundo aos homens.
Não interessa saber se o fizeram por bondade, fastio ou medo,
não interessa saber se foram para o Olimpo ou para um indefinível céu.
A pouco e pouco a presença dos deuses transformou-se em mito,
cinzas recolhidas pelos adoradores dos nevoeiros.
Houve procissões de velas a acompanhar a sua retirada
e os templos ficaram apenas povoados de silêncios.
Os deuses permitiram que Hércules libertasse Prometeu
e deixaram conselhos, proibições e medos.
Os deuses abandonaram-nos num mundo de sombras,
dividido entre os múltiplos infernos e a ilusão de paraíso.
Em Delfos só a velha e cega pitonisa
recorda o tempo em que os deuses decidiam o destino dos homens.
São talvez dela os ecos das palavras com que escrevo,
eu que não sou do tempo dos deuses nem tenho a memória da esfinge,
eu que até nem acredito nas divindades
nem nos sortilégios inscritos no interior dos dias,
eu que nunca estive mais longe do que a minha pequena realidade.
Restam dos deuses as recordações da pitonisa
que vou tecendo no passar das horas
com a paciência de quem tem a eternidade.

domingo, 6 de março de 2011

Nunca fui agricultor
nem plantei batatas no quintal que não tenho,
nunca sujei as mãos de terra
e por isso não sei a alegria que possa haver nisso.
Sou homem da cidade,
das livrarias, dos centros comerciais, das luzes artificiais,
dos pores do sol no ecrã do computador.
Por vezes tenho saudades do pátio onde brinquei em criança,
do arco, dos berlindes, dos carros de lata, das caricas
mas nunca me sonhei conquistador de terra firme.
Não serei astronauta, médico, arqueólogo (a não ser das palavras),
não terei nome de rua ou estátua na praça
e sinceramente não tenho pena por isso.
Sou só o que sou, nem mais nem menos,
mas não prescindo de viajar no futuro
e a terra só terá de mim o meu cadáver.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Não renunciei a nada
mas os dias têm outro ritmo
e fiquei do lado de dentro da janela a observar a vida.
Ainda não me habituei à infelicidade
nem passei a acreditar no poder da penitência.
Continuo dividido entre o medo e a esperança
e transformo a memória num relicário.
Não vivo no interior das palavras
mas são elas que marcam o passar das horas
e sou nelas quem se encontra quando se desconhece.

terça-feira, 1 de março de 2011

Ninguém pode dizer que falhou na vida
porque a vida não é um autocarro que se apanha ou perde.
Entre o vazio e a esperança não há alternativa
e temos que insistir contra os muros e os medos,
temos que nos agarrar à dignidade
e à força que advém de sabermos que temos direito à felicidade.
Que ninguém nos diga que há receitas e caminhos fáceis
e não nos queiram vender paraísos onde seríamos escravos.
Já chega de pastores à procura de rebanhos dóceis,
já basta da imposição de verdades que se querem definitivas.
Ninguém pode contabilizar o valor da vida
ou decidir com rigor quem é excedentário.
Há uma perpétua inquietação que nos preenche os dias
mas por favor deixem-nos encontrar os nossos caminhos
sem que haja sempre alguém a condenar-nos
só porque não repetimos o que está nos livros.
Ninguém é dono da verdade
mas o pior é transformar a vida numa cruzada contra os infiéis.
Deixem-nos ao menos acreditar que os paraísos não são de arame farpado
e que, para sermos felizes, não temos que viver de joelhos.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Abri as sete portas míticas de Tebas
uma a uma, usando a força.
Por detrás da primeira estavam crianças que não choraram.
Conhecia-as porque elas habitavam as minhas memórias.
Assustavam-me os seus olhos sérios
de quem não sabe brincar
e a sua permanente e muda acusação.
Uma delas parecia-se vagamente com o meu pai,
tinha um ar circunspecto e triste
e olhava para mim como se quisesse recuperar algo que perdemos.
Por detrás da segunda porta esperavam-me as esfinges,
envelhecidas, cansadas das maldições do tempo.
Apesar de tudo não me agradeceram.
Na terceira e na quarta portas não havia ninguém
e o silêncio e o vazio escorriam pelas paredes nuas.
Passou depois um século em que hibernei
porque também eu preciso de descanso.
Nesse tempo Tebas desapareceu do conhecimento dos homens.
Por isso ninguém soube quando arrombei as últimas portas.
Os livros que lá havia queimei-os em inquisições privadas
e as coisas que vi prefiro esquecê-las.
Ficaram presas nas palavras as crianças e as esfinges.
Enquanto os outros senhores da guerra comemoravam as suas vitórias
eu tentava reconstruir Tebas e as sete portas
mas só sobravam escombros e a minha imagem,
reprodução imperfeita do meu pai,
esfinge que se esqueceu que um dia foi criança.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Não escrevo tudo quanto sou;
há uma diferença entre o sentido e o que é dito
e as palavras não são espelhos transparentes.
Aliás, sou o que sou tão descontinuadamente
que o que escrevo não acompanha o que vou sendo
e, por pudor, omito o que não quero saber de mim.
Não, talvez não seja por pudor
mas a verdade é que me escolho no que de mim escrevo
e, depois, quando me leio, quase que não me reconheço.
Não se trata de mentir ou de dizer a verdade,
já basta de explicarem tudo com os espelhos de Narciso;
eu sou apenas eu e o que vou acrescentando
não para ser mais interessante ou ideal
mas porque cada dia descubro mais de mim em mim
numa permanente viagem em que sou o viajante e o barco
e também o oceano onde navego
até chegar a mim, porto e origem de tudo quanto sou.
A minha Ítaca de um dia a ter sonhado,
ilha-mulher rodeada pelas águas do meu desejo,
só existe agora nos exercícios da memória
e reconstruo-a pedra a pedra com as palavras
mas nunca fui grande arquitecto
e é inútil querer recuperar o passado.
A minha Ítaca submergiu na tormenta dos dias;
dela sobraram os calendários e alguns rituais
que vou repetindo para me convencer de que ainda sou Ulisses
e navego em direcção à esperança.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Assim como há os devotos das fatalidades,
sempre prontos para confirmar o desastre,
também há os que enfiam a cabeça na areia
e se recusam a ser testemunhas de uma realidade ignóbil.
Não vivemos no interior dos livros,
as paisagens não têm que ser necessariamente cinzentas
ou arco-íris rutilantes pintados à mão,
deixemo-nos de eufemismos ou de censura nas palavras.
As palavras que usamos não são meros espelhos
fabricados para reflectir os nossos vazios interiores
e o destino não está à espera na esquina do tempo
como esfinge segregada nos nevoeiros do medo.
Devemos sonhar e lutar pelos sonhos
mas quando nos querem colocar em prisões de cristal
há que saber resistir à felicidade controlada
e exigir espaços amplos e horizontes novos.
Não é a morte a nossa natureza
e a rebeldia de Prometeu é a marca de Caim,
o sinal que reúne os homens em redor da esperança.
Podia, um dia
se não houvesse tantos ses nas intenções,
tantos medos revestidos de palavras
a soarem como passos numa sala vazia.
Podia ser diferente
se o tempo não se repetisse nos calendários
e não houvesse tantas memórias de pedra.
Podia talvez
se as circunstâncias fossem outras
e outro também eu, diferente do que sou,
diferente mesmo do que queria ser.
Podia?
Só se saberá se houver mudanças
e nada for igual no reflexo dos dias.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A poesia

Não, a poesia não substitui a vida
mas pode dizê-la ou menti-la,
pode ser promessa, memória ou elegia.
A poesia não serve para anestesiar a dor
ou para fingir paraísos por detrás dos espelhos.
A poesia não é um conjunto de versos que rimam,
sentimentos exacerbados, luares em excesso,
dores agudas de alma e mortes de amor.
A poesia não se constrói com suspiros,
langorosos queixumes ou martirizados silêncios.
A poesia não exclui o sofrimento
nem pinta a cidade de cor de rosa.
A poesia não tem que ser epopeia de heróis e deuses
ou patético panegírico de um candidato à eternidade.
Não, a poesia não substitui a vida
mas pode guardá-la na memória
com o poder das palavras misteriosas.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Sei que é inútil tentar encontrar-te nas fotografias antigas
de um tempo de antes de te conhecer.
Eras então mais jovem
mas agora que ultrapassaste qualquer idade
deixaram de ter importância os calendários.
As imagens são apenas imagens transitórias,
pedaços de um tempo que já só é memória.
Guardo as fotografias nas gavetas
junto com os poemas que escrevi para ti
mas é tudo tão inútil como fingir que se é eterno
só porque houve um tempo em que tu eras a minha felicidade.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Os homens perderam a inocência das crianças,
deixaram-na escorrer como água no deserto
ou quiseram controlá-la impondo-lhe regras e limites
até a reduzirem a um catálogo de conveniências.
Hoje, o que há nos olhos dos homens é um desespero surdo
e uma vontade absurda de se deixarem dominar pelo destino.
O que sobrou da infância está convertido em memórias
e todas elas são manipuláveis e cinzentas,
cubos com os quais construimos os arranha-céus dos nossos sonhos.
Dizem que há uma criança no fundo de cada um de nós
mas isso não é verdade:
ao crescermos à força afogamos a criança
e a esse assassínio chamamos realidade.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Senhoras e senhores, ouçam bem com atenção
que a poesia é funambulo de circo
e os leopardos verdes da memória
breve terão os despojos do dia para devorar!
Acreditem que a magia se vende nas drogarias
em pacotes com descontos especiais
e é sempre possível ter como brinde um sorriso
ou uma viagem para dois aos jardins da cidade.
As palavras são ursos amestrados
provenientes directamente da Sibéria
e até as crianças podem trazer pela trela
os monstros que habitam os pesadelos públicos.
Não queremos os silêncios cúmplices do medo,
não ficamos à espera de que o destino se cumpra,
somos muito mais do que pedras num deserto de sonhos.
A poesia é alimento e não veneno
e se querem algo para anestesiar a alma
têm a televisão e as conversas das esfinges.
A poesia é festa e circo e não velório
ou carpideira de funeral com pompa e circunstância.
Senhoras e senhores, mastiguem a poesia
e não façam dela flores para enfeitar a vida!

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Durante dezassete anos estivemos juntos sem intermitências.
Isto pode não ser um bom início de poema
mas a poesia não se faz só com palavras bonitas
ou sentimentos convenientemente embrulhados.
Foram só dezassete anos mas foram nossos
e nada nos pode tirar o que tivemos.
Há pequenas coisas insignificantes
que, por serem insignificantes,
acabam por ter uma importância enorme na nossa vida:
um sorriso, uma intenção de despedida,
o esboço de um poema num caderno de escola.
Obsessivamente, procuramos a imortalidade dos momentos insubstituíveis
mas a verdadeira imortalidade, a possível,
é a daquelas coisas insignificantes
que não guardamos na memória
mas que são a carne e o sangue dos dias.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Considerações menores sobre o amor

Ninguém é mestre do amor,
ninguém pode assegurar que o amor não arrasta consigo o sofrimento,
ninguém pode predizer quando ele acaba ou se inicia.
Podem-se escrever tratados e entretecer teorias complicadas,
pode-se até tentar racionalizar as coisas do coração
mas as palavras são insuficientes para expressar as emoções
e há sempre mais no amor do que aquilo que se diz
ou que se esqueceu de dizer porque não era altura certa.
Morre-se de amor só nos filmes românticos
mas são profundas as mágoas e os desgostos
e julga-se que nada mais tem sentido
porque o mundo tem a cor do nosso desespero.
Quem diz que o amor não magoa mente ou nunca sentiu o amor
porque o confundiu com o amor mesquinho por si próprio.
Não há receitas para a amor
mas quando tudo acaba fica sempre o ter-se amado
porque o pior é ter medo de amar
e, sem ter sofrido as cruéis penas do amor,
não passar de um cadáver ambulante a imitar a vida.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Normalmente desejamos o impossível
e a nossa tarefa de homens divididos entre o sonho e a realidade
é transformarmos a vida numa inquieta viagem.
Somos filhos de Ulisses e temos sangue de minotauro,
oscilamos entre o abismo e as promessas de céu,
repetimos incansavelmente as mesmas palavras
como se fossem portas para o desconhecido.

Normalmente somos bichos assustados,
fanfarrões, impertinentes, imitando os improváveis deuses,
perpetuando a violência e a crueldade como se fossem o destino humano.

O que é esta normalidade que nos pesa,
que nos transforma os dias em jogos de espelhos,
caleidoscópios de que não conhecemos os mecanismos?

Que memórias podemos usar
quando nos resumimos a páginas de um livro?

Irrita-me esta normalidade obrigatória
mas também eu estou prisioneiro das palavras
e habituo-me à pele dos meus dias,
à inexorável substituição dos calendários.

Irritam-me os rótulos e os panegíricos fáceis
mas acabo por me conformar à existência minha,
esta forma de ir sendo no interior dos labirintos,
quebrando vidros, desmontando crenças e sonhos,
remodelando o universo num projecto de papel.

Normalmente irritam-me todas as promessas de felicidade mansa,
todas as normalidades que se pretendem definitivas
mas até essa normalidade minha, feita de inquietação, me cansa
e por momentos suspendo o exercício da palavra
incapaz de encontrar qualquer sentido no contexto do poema.
Podem as palavras permitir a transsubstanciação da realidade?
Quando as palavras aparecem urgentes,
vindas do mais fundo dos profundos silêncios,
há uma magia que ultrapassa o visível
e que não se guarda na memória dos homens.

Podem as palavras transportar-nos para além das distâncias?
Quando as palavras ganham corpo de argonautas
e têm qualquer coisa da consistência das caravelas
viajamos nelas muito para além das ilhas do isolamento
e descobrimos o secreto prazer de não ter destino marcado.

Podem as palavras fazerem-nos alcançar a eternidade?
Também as palavras são corruptíveis, degradáveis
e são companheiras da inconstante memória,
aias insubmissas de uma tradição que se quis perpétua
mas que se alimenta da inquietação dos homens.

Amo as palavras não porque sejam perfeitas
ou mágicas ou caminhos de liberdade
mas simplesmente porque sem elas seria o impossível vazio,
o negro mais negro da insuficiência humana.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Tenho momentos de palavras e momentos de silêncio
mas a verdade é que os silêncios estão saturados de palavras
e todas as palavras têm a mesma matéria do silêncio.
Por isso não sei se me escondo por detrás das palavras
ou se me revelo nos interstícios angustiados do silêncio.
Talvez sejam de palavras os meus espelhos
mas neles a minha esfinge silenciosa não sorri
porque não foi concedida às esfinges a capacidade de sorrir.
Tenho momentos de palavras e momentos de silêncio
e ambos são profundos e inquietantes
deixando-me esgotado
como se tivesse viajado para além das distâncias.
Tenho momentos em que nem sequer sou eu
porque as palavras e o silêncio são estranhos a mim.
Não chamo a isto de destino
porque o silêncio das palavras ainda não inventou os nomes,
não penso muito nisso porque pensar cansa
e prefiro aconchegar-me em mim
como uma criança às portas da noite.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Não me peçam nem me dêem conselhos,
não quero viver aquilo que pensam que é correcto
nem quero que vivam à imitação de mim.
Confesso que hesito e que me engano,
confesso que tenho mais perguntas do que respostas,
confesso que me irritam todos os que se querem modelos
porque não há manuais e tudo é provisório.
Com palavras construímo-nos e com silêncios
mas os que pretendem transformar-se em faróis no nevoeiro
confundem o vazio das palavras com o seu próprio vazio
e são profetas cegos a conduzir outros cegos.
Os meus mapas e os meus passos são meus e meus somente;
não quero levar ninguém nem que me levem.
Confesso que procuro a felicidade
mas ela não é uma prisão nem um campo de ovelhas
e sem inquietação não há humanidade
porque a definitiva paz só existe na morte.
Não me dêem nem me peçam conselhos;
assumo a responsabilidade por mim e pelos meus actos
e sei que não estou sozinho
porque só estarei sozinho quando me fechar nos meus limites
e me reduzir a um espelho convexo.
Não me queiram à força animal de companhia,
não insistam na ideia de que há receitas para tudo
e que o destino está escrito nos astros
ou em qualquer outro lugar perdido no nevoeiro.
Não transformem as palavras em oráculos de sombra
porque não quero saber das pitonisas da desgraça.
Não me peçam nem me dêem conselhos.
Não há epitáfios que sejam maiores do que uma vida.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Não podemos

Não podemos recuperar o que não fizemos e aquilo que não dissemos
mas podemos guardar as imagens e as memórias,
não deixar que os sonhos desistam de nós
e persistir na vontade de nascermos perante as coisas novas.
Não podemos ignorar que o tempo passa
nem ficar prisioneiros dos nossos espelhos.
Não podemos evitar a morte
mas não temos que viver de joelhos,
subjugados pelo medo e pelo destino.
Não podemos renegar a nossa herança
e abandonarmo-nos aos ventos do esquecimento
mas ainda e sempre é o futuro que é a nossa morada.
Não podemos simplesmente desistir de querer ser felizes.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Sobre o amor

Há os que gostam de se amar através do amor dos outros
e os que se limitam a amar indefinidamente.
Eu amei e fui amado,
se calhar não amei tanto quanto devia
e muitas vezes evitei dizer as palavras que querias ouvir
não porque não tas quisesse dizer
mas porque tinha medo de ser ridículo.
Há os que amam incompreensivelmente
e os que reduzem o amor a um cálculo racional.
Do amor devemos reter as boas lembranças
e acreditar que podemos ser felizes partilhando vidas.
A memória de ti é atraiçoada pelas palavras
e apenas retenho fragmentos, peças soltas.
Perdi o teu cheiro,
a tua ausência tem mais profundidade do que a tua voz
que se perdeu também entre duas margens
e só eu naufrago neste silêncio líquido.
São pedaços de ti o que está nas fotografias
mas se as reunir todas num enorme puzzle de luz e sombras
não te terei inteira.
Aliás, todas as imagens de ti mentem quem tu foste,
são superfícies apenas a denunciar o que não se pode ver,
a aprofundar o sentimento de saudade,
a repetir que o tempo não retorna ao passado.
Restam-me ainda e sempre as palavras,
mentirosas, crueis ou piedosas
para não te deixar perder no esquecimento.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Sou

Sou um homem da dúvida mais do que de crenças
e assustam-me todas as verdades demasiado densas,
aquelas pelas quais vale a pena morrer e matar.
Não desisti da felicidade, não desisti de nada
mas não quero perder-me numa qualquer miragem
nem quero a tranquilidade que advém do esquecimento.
Sou um homem das palavras,
das boas e das más palavras,
das palavras saturadas de silêncios,
das palavras que tentam explicitar o indizível.
Sou quem não se reconhece nos espelhos
porque as superfícies escondem as profundidades
e há sombras no interior da consciência.
Sou memória fragmentada e labiríntica,
páginas de vida escritas nas entrelinhas
e no entre cruzar do sonho e da realidade.
Não sou nem santo nem demónio
mas viajante do tempo sem mapas definitivos,
inconstante enigma que persiste em não se resolver
porque sei que quando encontrar a última resposta
deixarei de ter razões para continuar a ser.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Utopia

Acredito que os homens não são anjos nem demónios
e que a verdade não é uma mulher nua à espera
rodeada de cristais de gelo e nevoeiros.
É preciso estilhaçar os espelhos que temos nos olhos
e que nos dão uma visão distorcida de nós mesmos
segregando heróis e vítimas, monstros do desespero,
viajantes impossíveis num oceano convertido em deserto.
É preciso reinventar utopias,
devolver à esperança a sua profunda inquietação
e plantar rosas nos subterrâneos dos centros comerciais.
Acredito que o futuro não é brinquedo dos deuses
e que Prometeu e Sísifo não são apenas mitos.
É preciso que os homens voltem a ser homens,
insuficientes, excessivos, desastrados, loucos
e que recusem o destino de robots e estátuas.
Os paraísos não têm que ser propriedade de santos
e há ainda muito para aprender no riso das crianças.
Espero-te sabendo que não te voltarei a ver,
que a última imagem será sempre a última
e que também ela se desvanecerá com o tempo.
Espero-te desesperadamente
sem alaridos ou sentimentos exacerbados.
Espero-te numa estação desabitada que é o meu corpo.
Espero-te no silêncio angustiado dos descrentes.
Espero-te com as palavras envergonhadas
e as sensações cristalizadas no inevitável.
Espero-te como uma criança à janela
enfeitiçado pela vida que há lá fora
e esquecido dos estragos dos anos.
Espero-te porque a vida é uma viagem
e dela só sabemos o ponto de partida.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Somos herdeiros de um mundo por construir,
um mundo que existe nos sonhos das crianças
e de todos os que se recusam a transformarem-se em manequins de plástico.
Somos feitos do pó das estrelas
mas há demasiados espelhos e labirintos,
demasiados nevoeiros a impedir a esperança.
Somos o tempo e os seus mistérios,
somos filhos das palavras e do silêncio.
Nunca saberemos o que é a imortalidade
mas o que importa é amar e ser amado,
perpetuar a memória, recusar o esquecimento.
Somos quem queremos e quem podemos ser
e há sempre de nós algo que não será escrito.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Mais um Natal sem ti,
um Natal mais frio no interior do próprio corpo,
um Natal carregado de silêncios.
Repetem-se as palavras e os cânticos,
repetem-se as imagens no caleidoscópio dos dias
e tu continuas ausente
perdida irremediavelmente num tempo que não regressa.
Mais um Natal de promessas e intenções,
de caridade pública e televisiva,
de luzes e convites à felicidade do consumo.
Quando este Natal passar
como passam todos os natais, invariavelmente,
continuarei sem ti neste silêncio das palavras
porque só a tua ausência é real no espelho dos dias.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Alguém quis os homens à semelhança dos deuses,
cruéis, obcecados pela imortalidade,
capazes de sentir prazer com a dor alheia,
divididos entre a felicidade e uma qualquer miragem.
Alguém sonhou os homens com o pesadelo do Minotauro,
prisioneiros em labirintos apenas esboçados,
ansiando por uma liberdade que é sempre provisória,
antecâmara de uma prisão mais permanente.
Quem foi que permitiu aos homens ter visões de Prometeu
e recusar o paraíso dos rebanhos mansos
para descobrir a razão de ser no rochedo de Sísifo?
Podem ser filhos dos deuses, os homens,
deserdados, expulsos da bem-aventurança
mas são eles os construtores do futuro,
utópica residência de quem vive para além dos manuais.

As palavras

As palavras são os sinais do silêncio
e no entanto estão saturadas dos ruídos das coisas,
são vulcões que só a morte extingue
deixando como resíduos os ecos da memória.
Há quem lhes prometa fidelidade
ignorando que elas são eternas esfinges,
mulheres de fogo e cinzas, espelhos nossos.
Há quem pretenda desconhecê-las
querendo por força regressar ao caos primordial
mas elas estão presentes mesmo quando desprezadas.
As palavras são a pele das estátuas sem idade
e como elas são testemunhas do que aconteceu,
cúmplices de todas as estratégias do esquecimento.
Há palavras que se saboreiam lentamente
e outras que são pedras nos intervalos do tempo,
incómodas portas que se abrem para o vazio
ou nos deixam prisioneiros dos labirintos.
Confesso que gosto de todas as palavras
mas há algumas, ausência e morte,
que me magoam profundamente
e não consigo usá-las como se fossem símbolos,
inócuos sons para despertar memórias.
Confesso que não consigo imaginar a vida sem palavras
embora saiba que elas podem ser violentas,
recados de uma inexistência permanente,
sinais a substituírem aquilo que se perdeu irremediavelmente.
Como os dias, as palavras acumulam-se no fundo da ampulheta
e nunca saberemos o que será de nós quando acabarem.