segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Rituais

Há pequenos rituais nos espaços públicos,
gente que se conhece desconhecendo-se através das palavras,
repetindo os gestos até ao seu absurdo,
repetindo os reflexos de uma normalidade habitual.
Eu sou o estrangeiro a tudo o que se passa,
venho de longe onde não há sinais codificados
e onde as palavras não estão ainda domesticadas.
Eu sou aqui o intruso, o inexplicável,
aquele que não encaixa nos esquemas,
o enigma que perturba a tranquilidade e a estilhaça.
Só eu não pertenço à realidade habitual
porque não faço parte dos rituais constituídos
e uso as palavra como facas para cortar os dias
em lugar de adormecer no seu regaço.
Quando sair daqui será um alívio,
tudo poderá regressar ao aquário transparente
e eu levarei comigo a minha inquietação
povoada de palavras que ainda não foram usadas.
No silêncio saturado de barulho de um café anónimo
acredito ainda que as palavras são velhas feiticeiras
capazes de transmutar os dias e as suas sombras
e levarem-nos a viajar para além dos desertos,
para além dos territórios guardados pelas esfinges.
Há algumas palavras misteriosas
que gostam de se esconder por detrás dos nevoeiros
mas as mais perigosas são as inquietas,
aquelas que estão carregadas de violência e de silêncios,
as palavras que inundam as nossas sensações
e transformam tudo num aquário imprevisível.
No entanto, prefiro as palavras inesperadas,
as que me aparecem sem serem convidadas,
inoportunas, por vezes cruéis, mas inadiáveis,
as palavras que são o nosso corpo e o sangue,
as únicas que dizem de nós a realidade.
A realidade não é sonho nem fantasia
apesar do que dela dizem os poetas românticos,
a realidade não é montra de loja,
alfarrabista, armazém de produtos por catalogar,
a realidade não é teatro prestes a fechar,
espectáculo para um público que ainda não nasceu.
Quem pode aguentar a realidade inteira
sem espelhos, biombos ou desculpas de papel,
quem não a quis trocar por uma imagem tranquila,
uma paisagem com céu seguro e mar inofensivo?
A realidade é sombra e luz e nevoeiro
e do outro lado do painel com luzes e imagens
está o silêncio povoado com o indizível.
Quem sabe de que cor é feita a realidade?

sábado, 18 de dezembro de 2010

De novo só perante mim mesmo
sem desculpas, em ilusões, sem rodeios,
na crueza própria da realidade,
fitando nos olhos os reflexos no espelho das palavras,
penetrando no abismo das regiões proibidas,
acordando os velhos fantasmas adormecidos.
Quem procuro nos resíduos do eu estilhaçado,
que verdades estou disposto a aceitar de mim?
Uso as palavras para fazer uma anatomia do sentimentos
mas perco-me inevitavelmente no labirinto das emoções reflectidas.
Depois, só me resta forçar as memórias
até construir de mim uma imagem de sombras.
De novo só perante mim mesmo
sem remorsos, sem contas por ajustar,
humano, sem pesadelos de divindades
e sem paraísos de encomenda ou infernos privados,
criança diante dos mistérios do tempo.
Não sei e me procuro ou se fujo das origens
mas as palavras acompanhá-las-ei sempre
porque sem elas perderia a minha liberdade.
Tenho que repovoar os meus quartos interiores,
substituir os múltiplos silêncios
por um silêncio vivo, vestido de palavras, solidário,
tenho que deixar de olhar o espelho
ou os abismos que nele me obcecam.
Não quero habitar num deserto de sereias
a lamentar o tempo em que ainda havia água
e árvores e céus limpos de areia e horizontes.
Não quero regressar às cavernas do Minotauro
e ficar à espera do destino e do resgate.
Desistir é aceitar a morte por antecipação
e não posso permitir-me a fraqueza da inexistência.
A saudade não pode ser pretexto para abandonar a viagem
e temos sempre que acreditar que há novas ilhas
para além do horizonte permitido.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Desconheço os sinais cabalísticos e os mistérios,
ignoro os rituais do medo e os seus sacerdotes,
não tenho tempo para os altares sombrios
onde se adora a própria impossibilidade do infinito,
não tenho paciência para os labirintos vazios
onde querem aprisionar a crença ou a sua ausência.
Não acredito em poderes que tornam o homem mais insignificante,
não acredito nas brumas onde nascem os heróis
que nos querem resgatar ao preço da liberdade,
não endeuso sequer a razão e os seus fantasmas.
Continuarei a interrogar as coisas e a mim próprio,
inquieto, sem verdades absolutas, sem dogmas,
recusando os mitos e quem quer fazer deles a única verdade.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Seremos heróis dos nossos sonhos,
cansados, ruidosos, absurdamente solitários
e nos espelhos haverá sempre os reflexos dos minotauros,
as imagens distorcidas das sereias
aprisionadas numa tempestade de areia.
Seremos viajantes com os mapas ainda por desenhar
e todos os horizontes impedem o momento da morte,
inevitável regresso à ilha de onde nunca chegamos a sair.