domingo, 9 de novembro de 2008

As palavras

As palavras podem ser facas e espadas,
instrumentos subtis de libertar o sangue
e manter os homens nos limites dos seus medos.
As palavras são arcaicos estratagemas de tortura
inventados por antigas deusas insubmissas
que foram com elas reduzidas ao esquecimento.
As palavras são espelhos sem profundidade
substituída pelas sombras e o prenúncio de abismos
e quando me olho neles
fico sem saber da minha verdadeira identidade.
As palavras são feiticeiras que perderam o poder
mas retêm ainda a magia da sua impotência.
Houve um tempo em que fui delas escravo
e mesmo agora que sou vítima da desilusão
recuso-me a abdicar do seu sortilégio.
As palavras são as chaves da memória,
pesam-me no bolso como se fossem pedras
e por vezes abro portas que deviam ficar fechadas.
Desesperadamente anseio por um mundo de silêncios,
o universo de antes da criação das palavras,
o caos que anula a própria realidade.
As palavras podem ser esqueletos dos sentimentos,
aquilo que sobrou dos gestos e dos olhares,
a carbonizada memória do que só existiu na nossa imaginação
ou os remorsos por aquilo que necessariamente deveriamos ter feito.
As palavras são algemas e máquinas do tempo,
prendem-nos nos intervalos da evidência
e transportam-nos ao outro lado das coisas
ultrapassando as fronteiras e as esfinges de areia
com que nos habituamos a constituir os dias.
As palavras mentem tudo quanto dizem
e no entanto só nelas pode haver a verdade.
Quase em segredo sonho com o silêncio sem palavras,
um silêncio nevoeiro sem consistência nem profundidade
mas mesmo assim são necessárias as palavras
para que o silêncio tenha significado.

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