domingo, 28 de fevereiro de 2010

Há vidas silenciosas e outras agitadas, ruidosas.
A minha, por ser minha, é equidistante de tudo quanto conheço.
Silêncio e ruído são absurdas margens
e nada persiste a não ser a sensação de ausência.
Silêncio e ruído são pedras pintadas à mão,
pedaços da pele dos dias, lenços de água
mas eu fecho teimosamente as gavetas
com medo de perder as imagens da memória.
Não uso balança para avaliar o peso necessário do silêncio
e acrescentar-lhe depois uma pitada de sonoro ruído,
não planifico os dias do desespero
nem procuro a alegria barulhenta dos anestesiados.
O silêncio não é forçosamente triste
e o excesso de barulho pode encobrir o vazio de sentimentos.
Há vidas silenciosas e outras ruidosas
mas a minha não é silenciosa nem ruidosa;
é vida apenas
e minha.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sou por inércia e sem disso ter verdadeira consciência,
sou o que sobrou daquilo que queria ser.
Não sou falso nem sincero,
persisto, teimo,
tenho ânsias de bicho aflito
e recuso a morte e as suas armadilhas.
No corpo tenho as tatuagens da saudade
e na memória a ausência arde como uma inquisição.
Não contabilizo os dias que perdi,
não colecciono agendas de mágoas,
não me quero carpideira de mim mesmo.
Sou por ínvios caminhos que são meus,
sou cavaleiro andante de triste figura,
sou marinheiro sem barco e sem um oceano misterioso,
sou apesar dos silêncios transformados em palavras.
Persisto, teimo, existo
mas não tenho ilusões de Sísifo
nem quero desafiar os deuses.
De Homero são os olhos de ver no interior da realidade,
do minotauro é a certeza da chegada do herói ateniense
trazendo consigo a morte e a fama póstuma,
de Penélope é o cansaço da inútil espera
de costas voltadas para um mar aparentemente dócil.
As caravelas que passaram além do Bojador
iam carregadas de sonhos e de impérios,
as caravelas que partiram rumo às ilhas dos amores
regressaram com marinheiros aposentados,
poetas sonâmbulos ancorados nos bancos das cidades.
Vários reis substituíram os seus reinos por densos nevoeiros
vigiados por cavaleiros de triste figura
e houve mesmo quem lhes chamasse paraísos.
Tudo isto são fragmentos da memória
de uma criança que confundiu a vida com os livros
e viveu intensamente por intermédio de interpostas pessoas.
Mais tarde houve uma menina na janela,
donzela sem dragão nem princípe perfeito,
palavras,gestos, promessas interrompidas.
Também a menina da janela se partiu
deixando só lembranças e a ausência.
Depois foi o vazio de sentimentos,
a imobilidade da esfinge que se petrificou no tempo.
Tudo isto são páginas da vida da criança grande
resistindo ainda e sempre ao desespero.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

As terríveis erínias entreteem-se a entretecer o meu destino
enclausuradas nas cavernas do medo.
São poderosas as erínias
e até os outros deuses temem os seus decretos
porque ninguém foge ao destino que elas inventam.
São inevitáveis as erínias
mas eu ignoro-as.
Podem uivar as erínias como os cães da morte,
podem incluir todas as tragédias no meu horóscopo.
Mesmo assim ignoro-as,
desnecessárias mulheres para sublinhar a morte.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Tenho saudades de água,
eu que nunca viajei para além da terra firme,
eu, o eremita no mosteiro do meu corpo.
Tenho saudades das sereias que nunca vi
e de todos os adamastores que proíbem a distância.
Tenho saudades das ilhas dos amores
e das promessas de uma eternidade gloriosa.
Tenho saudades,sim, de tudo quanto é líquido
menos das lágrimas e dos naufrágios da memória.
Esqueço-me a pouco e pouco do som do teu sorriso,
meço os dias pelos calendários impossíveis,
impede-me a memória de construir o futuro,
luto ainda e sempre contra o desespero,
inevitável é porém a ausência,
ave que continuamente vem poisar na minha janela.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Depois do Carnaval continuamos mascarados
fingindo que sabemos que não somos imortais.
Nos calendários repetem-se as boas intenções
e laboriosamente tecemos rosários de paciência.
Cobrimos com cinza os corpos apenas pressentidos
e há espinhos que crescem no interior das mãos vazias.
Na passerele da vida somos manequins,
somos vagabundos, príncipes destronados,
indefenidos seres que se alimentam de esperanças,
os loucos da cidade que imitam os doutores da fé.
Depois do Carnaval continuamos mascarados
fingindo que fingimos os fingimentos habituais,
fingindo uma seriedade que é uma segunda máscara,
imitando as estátuas e a sua impassibilidade.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

De Ulisses tenho a impaciência e a finitude
mas enjoo na viagem
e perdi a ilha antes mesmo de a conhecer.
A minha Penélope cansou-se de existir,
revivo-a apenas na memória,
a sua imagem cobre-se de sombras
e tudo é nevoeiro à sua volta.
Os deuses esqueceram-me,
entretidos nas suas guerras sem sentido
mas não lhes sinto a falta.
Quando a vida me sobrar
não terei a serenidade dos heróis antigos
nem enfrentarei a morte sabendo que fiz o que devia.
Ao menos que fique de mim uma pequena esfinge feita de palavras
a inquietar aqueles que vivem num permanente aquário.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Não invejo os deuses insensíveis
porque a sensibilidade se esgota com o passar dos séculos,
não os invejo
nem mesmo quando eles comparam os seus poderes
e são cruéis na sua crueldade desnecessária.
Não invejo os deuses
nem mesmo quando eles preparam para mim o pior destino.
Nada invejo a não ser a serenidade perdida
e não poder recuperar o tempo em que estávamos juntos.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Os deuses

Os decretos dos deuses são cruéis e insondáveis.
Para combater o tédio
os deuses transformam o mundo num circo de pulgas,
divertem-se com as desgraças dos homens,
enfurecem-se quando eles lutam pela liberdade,
castigam-nos severamente quando eles se recusam à submissão.
Os deuses são invejosos, vingativos,
piores do que os piores humanos
porque a sua memória é infinita
e a crueldade é uma estratégia para fazer passar o tempo.
Os deuses reúnem-se em banquetes para falar dos homens
e contam histórias sobre a sua credulidade.
Os deuses à noite dormem com os seus medos
e sentem-se infelizes por não serem mortais.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Eternidade, lugar de confluência de todos os desejos,
Mulher cujo corpo se nega cruelmente,
Indícios de uma promessa que foi quebrada,
Lua num céu de celofane,
Impossibilidade transfigurada em ausência,
Adeus que se recusa a ser uma despedida.
Um poeta dizia que tinha sentimentos como facas
e outro confessava que tudo o que sentia era fingido.
Eu tive o tempo de usar as palavras para fingir o que não sentia
e o tempo de rasgar a carne e libertar o sangue,
tudo em surdina e no interior dos meus labirintos.
Li os poetas e aprendi que os sentimentos
podem ser cinza e fogo, água desassossegada,
grãos de areia que a pouco e pouco constroem o deserto.
Li os poetas e não sei mais do que sabia,
continuo a alternar o tempo dos fingimentos
com os dias que abrem feridas na memória.
Sinto inevitavelmente com a cabeça
mas isso não impede que fique exausto
como um Sísifo sem ninguém que o evoque num poema.
Continuarei a usar as palavras
para evitar o que sinto,
para evitar que sinta.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O que é que se pode fazer com os sentimentos estilhaços,
as facas, as sensações exacerbadas, os medos,
as súbitas alterações na face dos espelhos?
Permaneço imóvel como uma esfinge de pedra,
finjo que o tempo é a minha muralha
e uso as palavras como guardanapos da alma.

O que é que se pode fazer com os sentimentos lágrimas,
esta água que escorre no silêncio dos dias
e se acumula no fundo de um desespero surdo?
Permaneço na transfiguração dos momentos,
parto sem sair do meu espaço mínimo,
sei porque reconheço as fronteiras da minha ignorância,
sonho porque nem a morte me pode impedir a esperança.

No limiar de um tempo que é só meu
hesito no manuseamento dos sentimentos,
visto-os de palavras, misturo-os
num espaço delimitado pela consciência
e permaneço eu apesar de todos os naufrágios.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Se é possível aos homens amar infinitamente
então que o meu amor por ti ultrapasse a morte,
ultrapasse a saudade e esta tortura que é a tua ausência.
Se é possível amar para além das palavras
que o silêncio seja o meu testemunho
e que a memória se transforme numa perpétua oferenda.
Se é possível evitar o esquecimento
estaremos os dois de mãos dadas
para além do tempo, para além da distância,
Adão e Eva a recuperar a nossa origem.
Subsisto nas margens da vida
ainda submerso num turbilhão de sentimentos.
Era simples o meu mundo e confortável,
os dias tinham horas e as horas podiam ser programadas
nem que fosse apenas na tarefa de as sonhar diferentes.
Nós éramos o núcleo de tudo, o abrigo,
o aconchego de uma presença indubitada,
nós éramos o sentido que ia para além das palavras,
nós éramos suficientes para justificar a esperança.
Depois de nós fiquei só eu e o vazio,
a ausência, o desmoronar das horas calmas.
Subsisto nas margens da vida
e a memória é a companheira que não substitui o desespero.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Sou Ulisses que perdeu a ilha e a viagem,
no interior da noite sinto a angustia do Minotauro
e foi em mim que morreram as perigosas sereias,
mulheres que prometiam o que há para além da banalidade.

Sou D. Sebastião sem império ou nevoeiro,
caravela que não conseguiu ultrapassar o Adamastor
e ficou suspensa entre o naufrágio e o tempo.

Sou saltimbanco enclausurado numa casa vazia
a treinar as piruetas diante de um espelho quebrado.

Sou silêncio submerso por uma tempestade de palavras,
destroços dos dias, máscaras dos sentimentos,
icebergues a flutuar num lago de sombras.

Sou quem fui e quem poderei ser.

Sou sonho e pesadelo, raiva,
as sensações distorcidas e os medos,
os diferentes ângulos de um mesmo reflexo
repetido nas paredes de uma loja de conveniência.

Sou o caleidoscópio de imagens congeladas,
todas elas convocando uma presença impossível,
todas elas reafirmando a tua ausência.

Sou memória e esquecimento, náusea,
relógio de água subitamente perdido no deserto
impossibilitando-me de saber o tempo e a distância.

Sou o que penso e a inconsciência,
vários rostos e nenhum deles nítido como eu queria,
nenhum deles de mármore para ultrapassar a morte.

Sou talvez a ilusão de ainda querer ser
mas essa teimosia herdei-a dos meus antepassados,
carrego-a como uma identidade,
preciso de saber de mim como quem regressa à origem
e descobre que tudo ainda está por construir.
Desenho-te nas margens de um papel imaginário,
primeiro o teu sorriso,
depois as mãos que repousam no regaço,
essas mãos que tinhas sempre ocupadas.
Tenho dificuldade em definir a cor dos teus olhos,
verdes ou castanhos conforme a inspiração.
Deixo o teu corpo na penumbra da saudade
e não sei o que fazer com este desenho apenas imaginado.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Amar-te não foi suficiente.
Por decreto do destino (em que não acredito)
foste descobrir a verdade que há na morte
e eu fiquei entre o silêncio e a ausência
a ruminar imagens e a insistir nas palavras.
Amar-te não foi suficiente.
Acreditei que era impossível abandonares-me
mas dizem que a realidade é mais forte do que a crença
e eu não gosto da realidade sem ti,
sinto que tudo se esvaziou à minha volta
e no interior de mim já não te tenho.
Amar-te não foi suficiente
e isso dói
sem que encontre palavras para justificar a tua ausência.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Com as palavras podem-se perpetuar memórias
mas elas não conseguem fazer esquecer a ausência.
Por vezes as palavras são cruéis na sua inutilidade
e dissolvem-se na boca como areia árida,
por vezes as palavras doem como gritos
e procuramos auxílio na águas do silêncio.
Outras vezes as palavras mentem a nossa realidade,
transportam-nos como tapetes mágicos
e julgamos que são paraísos os nossos pequenos infernos pessoais.
Como eu odeio as palavras hipócritas e ocas
com que preenchemos os nossos quotidianos,
como eu amo desesperadamente as palavras
sabendo que não posso esperar delas a salvação
mas mesmo assim repetindo a magia de criá-las.
Estupidamente pensamos que existimos para sempre,
movendo-nos num tempo que é só nosso,
irresistível presença no interior do espelho,
livremente prisioneiros nas nossas fronteiras,
iguais ao que a nossa memória diz de nós,
amáveis esqueletos a aguardar a morte.

Amamos apenas os nossos reflexos,
guardamos todos os objectos inúteis,
uma a uma contabilizamos as horas
insistindo nas pequenas impossibilidades,
amamos mesmo quando amar é um pleonasmo,
resistimos porque nada mais há para fazer.