sábado, 26 de março de 2011

Só eu envelhecerei no passar dos dias,
no dizer das palavras e na sua lenta mastigação.
Tu ficaste prisioneira num vórtice do tempo,
só te sei à distância, envolta nas névoas da memória,
só te encontro na antecâmara das palavras.
Só eu sentirei o peso das palavras que ficaram por dizer
e terei dificuldade em recordar com nitidez os momentos.
Tu és a minha mais cruel impossibilidade.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Podemos ser felizes de muitas maneiras,
insuspeitas, inusitadas ou mesmo as habituais,
aquelas que têm direito a legendas
e as que só aparecem no interior dos sonhos.
O que interessa é que podemos ser felizes
apesar dos paraísos com que nos querem limitar a vida.
Não escrevo para os outros
porque acredito que não estão interessados em saber o que sinto.
Não escrevo para os deuses
para que tenham pena de mim
e alterem o destino a que me condenaram
até porque não acredito no destino nem nos deuses.
Não escrevo para mim
porque sentir-me quem sou incomoda-me
e as palavras abrem feridas
na minha pele marcada pelas memórias.
Escrevo, empurro a minha pedra de Sísifo
à procura do sentido da existência.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Ser espectador da vida dos outros é um castigo
porque não posso ser eles
porque provavelmente a sua vida é mais interessante do que a minha
porque não têm as mesmas fronteiras que eu.
Ser espectador da vida dos outros é um alívio
porque sinto que há coisas mais importantes do que eu,
realidades mais reais do que os meus pensamentos.
Somos claustrofóbicos
até nos apercebermos de que o mundo não gira à volta do nosso umbigo.
Somos ilhas rodeadas de pânico
até descobrirmos que os outros não são o nosso inferno
mas a condição da nossa própria existência.
Desconheço-me e reconheço-me no interior da mesma palavra
e sei que o silêncio magoa e consola
como se fosse uma ferida e a sua cura.
Sou quem resiste à superfície dos espelhos
e tenho abismos e poços de água estagnada
onde o luar das palavras não se reflecte
porque até as próprias sombras temem o vazio.
A esfinge do mito inquiria os viajantes
mas a minha esfinge está cansada das memórias
e insiste que ninguém tem um destino marcado.
Quase que me acomodo à minha realidade
mas depois cresce em mim a insatisfação e a raiva
e regresso aos tempos de Ulisses fugindo do paraíso.
Esqueço-me no interior das palavras interditas
e por instantes posso até ser da mesma matéria que a esperança.

sábado, 19 de março de 2011

Há palavras que são convites ao silêncio
e outras que são desesperos mudos, gritos.
Quantas palavras cabem num olhar de medo
e quantas desilusões há numa palavra recusada?
As palavras podem ser farpas na pele dos dias,
as rugas do tempo a converter a memória num retábulo.
As palavras são sinais mas magoam com a crueldade que pomos nelas.
É difícil falar das palavras com palavras,
é como descer aos abismos da consciência,
ressuscitar fantasmas, reconstruir espelhos.
As palavras não são desejos mas têm a matéria dos sonhos,
provocam arrepios nos papeis que por elas esperam,
sabem a esperança e a mundos de infância.
É impossível falar das palavras sem palavras,
essas esfinges que nos habitam o corpo
e dizem de nós os segredos e as mentiras.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Deixai-vos de filosofias,
dizem-vos os professores das respostas únicas,
os mestres dos ensinamentos prolixos e incontestáveis.
Questionar continuadamente cansa e aborrece,
aconselham com a sua experiência de séculos,
questionar é inútil, é de ignorante,
dizem com o saber que recolheram nas enciclopédias.
Persistir no inconformismo é próprio dos jovens rebeldes,
dos marginais e dos que não têm família,
sussurram quase que a medo os que amam a ordem,
incontornáveis respeitadores da situação seja ela qual for.
Filósofos e poetas são os loucos da nossa sociedade,
asseguram os que se afirmam como modelos da normalidade.
Deixai-vos de filosofias, de poesias e de todas as inutilidades,
deixai-vos de quer mudar o mundo.
porque não haveis de vos submeter ao destino
como obedientes ovelhas dos ordeiros rebanhos?
Sem filosofia e sem poesia, sem rebeldia,
a história dos homens poderia ser resignação e medo.

terça-feira, 15 de março de 2011

Ninguém nos impede de sonhar
mas podemos sonhar a preto e branco ou a cores,
podemos ter muralhas nos desejos
ou querer ultrapassar os horizontes permitidos.
Há cada vez mais regras e proibições,
cartilhas, conselhos e conselheiros, pastores de almas
e dizem-nos que devemos ter uma vida planificada.
Ninguém nos limita os sonhos a não ser nós mesmos
porque estamos habituados a que a obediência compensa.
Quando nos ameaçam com os remorsos
não podemos deixar que a vida fique prisioneira do pecado
nem devemos acreditar na primeira promessa de paraíso.
Sonhamos o que somos e o que queremos ser
e nunca é tarde para nos reinventarmos
num mundo que não seja o nosso inferno.
Não pertenço à geração à rasca.
A minha geração é a das utopias que se foram desvanecendo
enquanto nós próprios nos íamos acomodando à normalidade,
a minha geração é a da aprendizagem da liberdade.
Não acho a minha geração melhor ou pior do que a de agora,
os tempos são outros e outras talvez as formas de expressar os sonhos.
O que importa é não perder a capacidade de sonhar
e não estar na vida a medo, amordaçados,
incapazes de querer da realidade também o impossível.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Aniversário

Neste dia em que é costume sentir o peso dos anos
penso em ti sem desespero,
com a nostalgia que se tem pelas coisas que perdemos.
Não vou rever os calendários,
não vou contabilizar a tua ausência
nem fazer relicários com as fotografias
numa tentativa inútil de reter a tua imagem
na perfeição dos momentos irrecuperáveis.
Sem ti sou menos eu
mas continuo a teimar contra a fatalidade.
Não quero os meus dias revestidos de lágrimas
e se são sempre para ti as minhas palavras
não as quero mausoléus de ilusões proibidas.
Neste dia em que é hábito analisar as rugas do tempo
não me queria tão prisioneiro em mim
mas não anseio pela liberdade do esquecimento.
Sempre julguei que envelheceríamos juntos
e neste dia sinto mais o quanto me fazes falta.

domingo, 13 de março de 2011

Os domingos são dias da família,
das lentas romarias aos centros comerciais.
Nos domingos a mãe lava a roupa, passa a ferro,
faz um almoço melhorado no forno
enquanto o pai lê o jornal de pijama
e espera a hora do relato do futebol na rádio.
Nos domingos não há escola
e o tempo arrasta-se apesar da televisão.
Hoje a Sofia estreou o vestido novo
e o João sujou a camisa branca com nódoas de fruta.
Felizmente que amanhã não é domingo
e até podemos fazer o elogio da família,
esse sagrado alicerce da nossa sociedade.
Quando te chamo em silêncio,
sem lágrimas e sem gritos,
é o silêncio que responde.
Tornás-te-te silêncio,
tu que eras a força e a tempestade
e é no silêncio que posso estar contigo.
São de silêncio as tuas palavras
e com elas construo o teu corpo de memórias.
É em silêncio que te digo da falta que me fazes
e não há palavras para traduzir o teu vazio em mim.

sábado, 12 de março de 2011

Senhora, estás longe,
mais longe do que alguma vez posso estar
e não tenho meios de chegar até ti.
Senhora, vives na minha memória
mas isso não acalma o meu desassossego.
Como nas cantigas de amigo, senhora,
apenas posso lamentar a distância entre nós
mas sei que é impossível reencontrar-te.
Senhora, só sei que não posso esquecer-te.
Mãe, conta-me histórias
enquanto ainda tiveres memória das coisas,
conta-me histórias para não ter medo do escuro
porque sou uma criança grande com muitos medos.
Não precisam de ser histórias de animais que falam,
não têm que ter princesas, dragões e finais felizes,
basta-me que a tua voz me faça regressar à infância
quando o mundo era uma perpétua novidade.
Mãe, conta-me histórias
para eu não pensar nas coisas de adulto que tenho que fazer
e nas palavras vazias que tenho que utilizar
para fingir os sentimentos que é suposto ter.
Mãe, diz-me porque é que tudo era mais simples antigamente
quando tinha um pátio para brincar.
Mãe, conta-me histórias
mesmo que pareça que não estou a ouvi-las.
Mãe, conta-me histórias
conta-me só histórias mesmo que saibas que não acredito nelas
porque já não consigo acreditar em nada.
Mãe, enquanto houver histórias eu posso talvez ser feliz.

quinta-feira, 10 de março de 2011

De amor não se morre mas de ódio sim.
Talvez não haja amor sem sofrimento
mas o ódio é um veneno que nos demoniza
e converte os dias em lugares de inferno.
Não é possível deixar para amanhã o amor,
adiar a esperança ou negar que todos queremos ser felizes.
Não é possível justificar a violência,
pretender que a nossa força bruta pode ser razão
e deixar que tudo aconteça conforme planeado.
O amor torna-nos mais humanos
mesmo que à custa de alguma racionalidade
mas o ódio esvazia-nos por dentro,
transforma-nos em cadáveres prematuros
e, pior do que isso, fabricantes de cadáveres.
Sim, acredito no amor porque fizeste parte da minha vida
e nem sequer tenho ódio aos deuses que te roubaram de mim,
apenas saudade que é ainda uma das formas do amor.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Não repetirei a viagem de Ulisses.
Faltam-me as forças e já não tenho Penélope
nem ilha segura onde ancorar o meu corpo.
As sereias banhar-se-ão nas águas da minha amargura
e só Polifemo compreenderá o vazio das minhas palavras.
A verdade é que estou demasiado fechado em mim
para poder desejar o longe e a distância.
A verdade é que já não sei qual é a minha verdade
e tenho muitas zonas de sombra na memória.
Não repetirei a viagem de Ulisses.
Poderei fazer outras viagens mais serenas,
poderei ainda ter que combater os meus medos mais profundos
mas tudo acontecerá sem a intromissão dos deuses
porque estou cansado de querer uma felicidade perfeita
daquelas que se escrevem nos poemas.

terça-feira, 8 de março de 2011

Havia uma fábrica de máscaras em frente da minha casa da infância.
Eram máscaras de papelão, mágicas
e, ao usá-las, era como se mudasse de corpo
e fosse na verdade o pirata dos meus sonhos,
o Sandokan dos livros que li,
o comandante de corsários e explorador dos oceanos.
Hoje, as máscaras são diferentes e também os piratas,
o Carnaval acontece na televisão
e a criança que fui abandonou a casa.
A fábrica de máscaras fechou
e dela só sobrou a memória e este esboço de poesia.
Neste Carnaval da vida estamos mascarados de homens civilizados.
Fingimos aquilo que gostaríamos de ser
ou o que os outros querem que nós sejamos,
assumimos os nossos fingimentos como realidades
e cobrimos tudo com a cortina das palavras.
É Carnaval, ninguém leva a mal
mas debaixo da máscara sufoca a nossa identidade
e acabamos por ser os fantasmas de nós mesmos,
crianças que querem desesperadamente ser adultos
nem que seja à custa da sua liberdade.

segunda-feira, 7 de março de 2011

A grande lucidez dos deuses foi terem deixado o mundo aos homens.
Não interessa saber se o fizeram por bondade, fastio ou medo,
não interessa saber se foram para o Olimpo ou para um indefinível céu.
A pouco e pouco a presença dos deuses transformou-se em mito,
cinzas recolhidas pelos adoradores dos nevoeiros.
Houve procissões de velas a acompanhar a sua retirada
e os templos ficaram apenas povoados de silêncios.
Os deuses permitiram que Hércules libertasse Prometeu
e deixaram conselhos, proibições e medos.
Os deuses abandonaram-nos num mundo de sombras,
dividido entre os múltiplos infernos e a ilusão de paraíso.
Em Delfos só a velha e cega pitonisa
recorda o tempo em que os deuses decidiam o destino dos homens.
São talvez dela os ecos das palavras com que escrevo,
eu que não sou do tempo dos deuses nem tenho a memória da esfinge,
eu que até nem acredito nas divindades
nem nos sortilégios inscritos no interior dos dias,
eu que nunca estive mais longe do que a minha pequena realidade.
Restam dos deuses as recordações da pitonisa
que vou tecendo no passar das horas
com a paciência de quem tem a eternidade.

domingo, 6 de março de 2011

Nunca fui agricultor
nem plantei batatas no quintal que não tenho,
nunca sujei as mãos de terra
e por isso não sei a alegria que possa haver nisso.
Sou homem da cidade,
das livrarias, dos centros comerciais, das luzes artificiais,
dos pores do sol no ecrã do computador.
Por vezes tenho saudades do pátio onde brinquei em criança,
do arco, dos berlindes, dos carros de lata, das caricas
mas nunca me sonhei conquistador de terra firme.
Não serei astronauta, médico, arqueólogo (a não ser das palavras),
não terei nome de rua ou estátua na praça
e sinceramente não tenho pena por isso.
Sou só o que sou, nem mais nem menos,
mas não prescindo de viajar no futuro
e a terra só terá de mim o meu cadáver.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Não renunciei a nada
mas os dias têm outro ritmo
e fiquei do lado de dentro da janela a observar a vida.
Ainda não me habituei à infelicidade
nem passei a acreditar no poder da penitência.
Continuo dividido entre o medo e a esperança
e transformo a memória num relicário.
Não vivo no interior das palavras
mas são elas que marcam o passar das horas
e sou nelas quem se encontra quando se desconhece.

terça-feira, 1 de março de 2011

Ninguém pode dizer que falhou na vida
porque a vida não é um autocarro que se apanha ou perde.
Entre o vazio e a esperança não há alternativa
e temos que insistir contra os muros e os medos,
temos que nos agarrar à dignidade
e à força que advém de sabermos que temos direito à felicidade.
Que ninguém nos diga que há receitas e caminhos fáceis
e não nos queiram vender paraísos onde seríamos escravos.
Já chega de pastores à procura de rebanhos dóceis,
já basta da imposição de verdades que se querem definitivas.
Ninguém pode contabilizar o valor da vida
ou decidir com rigor quem é excedentário.
Há uma perpétua inquietação que nos preenche os dias
mas por favor deixem-nos encontrar os nossos caminhos
sem que haja sempre alguém a condenar-nos
só porque não repetimos o que está nos livros.
Ninguém é dono da verdade
mas o pior é transformar a vida numa cruzada contra os infiéis.
Deixem-nos ao menos acreditar que os paraísos não são de arame farpado
e que, para sermos felizes, não temos que viver de joelhos.